Desporto Português 2023, caminho a seguir (conclusão)
Bola tem rolado com uma taxa de eficácia interessante nos relvados portugueses na presente temporada. (Foto: IMAGO)
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Desporto Português 2023, caminho a seguir (conclusão)

OPINIÃO11.11.202309:04

Maus líderes geram o direito à indignação e vão provocando a consequente demissão da intervenção cívica necessária

Terminei a opinião anterior afirmando que «reações violentas de todo o tipo expressam um desespero social que urge perceber e antecipar». Mas poderíamos ter também perguntado como se justifica perante a atual realidade social o silêncio comprometedor do desporto internacional e nacional. Mau sinal! Como se ao desporto não pertencesse ter intervenção política. Melhor dizendo, como se o desporto não fosse uma atividade social cujo fundamento político transparece todos os dias nas suas diferentes manifestações.

Há uns anos atrás, sob o título Demasiada pressão no trabalho?, o prestigiado jornal francês Le Monde abordou num determinado momento a questão de terem então aumentado os suicídios no local de trabalho. Um dos responsáveis de uma das empresas onde ocorreu um suicídio disse: «A questão de fundo reside em procurar saber o que se poderia ter feito no sentido de evitar que tal tivesse acontecido, detetando em devido tempo o estado de sofrimento dessas pessoas.» Por sua vez um responsável de um sindicato acrescentou que estes acontecimentos refletem «a superfície visível de um enorme iceberg, pois são vulgares hoje em dia reações de trabalhadores aos mais variados níveis, desde crises de lágrimas, dificuldade para adormecer, depressões, tomada constante de calmantes, etc». Outro dirigente sindical acrescentou ainda que «estão cada vez mais frágeis as relações sociais a nível das diferentes empresas, verificando-se um gradual desaparecimento dos necessários laços de solidariedade, preocupação com o outro e diálogo social».

Entretanto interrogado na mesma altura, o psiquiatra francês, Christophe Dejours, esclareceu: «Estamos perante uma profunda degradação do que se pode designar como a vida em comunidade. Tudo o que existia de entreajuda e preocupação com o outro na vida social das diferentes comunidades está em vias de extinção. Todos conhecemos situações referentes ao passado em que, em situações idênticas, a generalidade dos trabalhadores encontrava nos seus companheiros de trabalho uma solidariedade que hoje praticamente desapareceu.»

Face a atualmente existirem também entre nós sinais idênticos, que estamos a fazer no sentido de prevenir em vez de remediar? Mais em particular, que ajuda está a dar o desporto português em geral no sentido de contrariar a atual e bem visível queda dos valores e princípios fundamentais que devem presidir à nossa vida social? Será que estamos a preparar a nossa juventude, habilitando-a para como se vive em sociedade e para saberem confrontar-se com a frustração provocada por uma cada vez maior exposição ao insucesso e turbulência que o futuro lhes reserva? Será que o que se passa atualmente um pouco por todo o Mundo não é motivo suficiente para todos repensarmos o que andamos a fazer a nível social e educativo e, nomeadamente, nos interrogarmos até onde estamos a potenciar junto da nossa juventude o imenso valor formativo contido na prática desportiva? Que medidas estamos a tomar em termos de princípios e valores para que a sociedade portuguesa recupere a confiança e o respeito mútuos entre cidadãos e receba os incentivos que carece? Está de facto a acontecer que estamos a recuperar uma vida social onde o associativismo e a solidariedade sejam uma realidade? E, principalmente, onde o desporto português desempenha a sua fundamental missão congregadora e emancipadora?

Através deste Desporto Português 2023, caminho a seguir estamos a tentar ajudar. Dizendo de forma clara que basta de não punirmos quem o merece e, pior ainda, não distinguirmos aqueles que, pelo seu exemplo, poderiam constituir verdadeiras molas impulsionadoras do nosso entusiasmo e orgulho coletivo. Chega de tentar tratar todos por igual, em vez de todos com justiça. Terminem por favor com a utilização de expressões como «em equipa que ganha não se mexe», ou «ser segundo é ser o primeiro dos últimos», cujo uso revela a razão das dificuldades existentes quanto a transformarmo-nos num país competitivo e socialmente modelar.

Mas atenção, palavras não faltam. Atos responsáveis e mobilizadores da nossa motivação, nem por isso. Muitas palavras, pouca coerência. Entretanto, está bem patente a necessidade de resposta a três perguntas decisivas na área da motivação e da superação coletiva.

Se me sacrificar pelo interesse coletivo, que ganho eu com isso? Se fizer algo mal ou me revelar permanentemente desmobilizado e egoísta, que me acontece? Qual é a diferença e quais são as consequências respetivas entre cumprir ou não as regras de vida coletiva vigentes? Sempre que, face aos atos que cada um pratica, não se verificarem consequências, dificilmente será possível encetar o caminho da mudança. Se persistirmos em abrir portas para que não se cumpra a lei ou esta seja por vezes distorcida a ponto de se transformar em algo suficientemente flexível para que a impunidade se mantenha, ninguém espere que o nosso país recupere o que quer que seja. Comportamental e economicamente, como também a nível desportivo, arrastaremos o estigma de não termos sido capazes de transformar em oportunidades as ameaças que aqui e ali nos afligem.

Urge assim iniciarmos uma prática desportiva e comportamental diária em que imperem a preocupação com os outros, a ambição expressa de uma visão positiva do futuro sem perdermos o pragmatismo necessário, o sonhar e viver com entusiasmo as emoções sempre presentes no dia a dia da nossa vida. Por fim, precisamos fomentar que a cada momento aumente cada vez mais a paixão por aquilo que fazemos, mobilizando por essa via a motivação dos nossos concidadãos para uma decisiva entrega à luta por um futuro melhor.

Face à incredulidade e o desespero que nos provoca a atual realidade política nacional e internacional, por vezes parece que nos resta exclusivamente sonhar com um País diferente daquele em que vivemos. Em que os cidadãos, política e economicamente, tenham um papel ativo. Onde a iniciativa individual seja incentivada, existam objetivos comuns a atingir e uma forma de Governo onde prevaleçam a abertura democrática e a ação coletiva. Um sistema político baseado nas crenças, aspirações e iniciativas de cada cidadão. Tomadas de decisão participadas, valores e regras de vida coletiva que todos respeitem, envolvimento nacional ao redor dos interesses coletivos. Visível interesse comum por uma sociedade com valores, cada vez melhor e mais organizada e um cuidado constante em não permitir que se forme uma classe dominante. Cada cidadão incentivado a participar na discussão dos assuntos que dizem respeito ao interesse coletivo e a garantia que a ninguém será permitido instalar-se definitivamente no poder decisório. Reconhecimento e distinção de quem acrescenta valor, justiça para todos. Quem governa a justificar a confiança da população em geral. Uma sociedade em que todos são importantes, onde reina a paixão e o entusiasmo e são constantes a motivação, a capacidade de superação, a autodeterminação, o direito de oportunidades e a segurança social. E também onde a ninguém seja permitido sobrepor os seus interesses pessoais aos da comunidade. Cada cidadão com a possibilidade de expressão livre do seu potencial individual e protegido de qualquer abuso físico, intelectual, verbal, etc. Uma sociedade onde os cidadãos são o Estado e vice-versa, sentindo a cada momento que, ao aderirem e defenderem os interesses coletivos, simultaneamente sentem estar a defender os seus interesses individuais. Todos os cidadãos a perseguir a excelência e envolvidos numa teia emocional que os impulsiona para um cada vez maior empenho ao serviço do bem comum e os torna orgulhosos de serem donos e senhores da sua individualidade. Sonhar, afinal, com um tipo de sociedade criada a partir das necessidades dos cidadãos, das suas crenças, aspirações e iniciativas onde tudo assente em decisões participadas, valores e objetivos comuns e, principalmente, um enorme envolvimento dos cidadãos na vida cívica.

Segundo palavras de Ken Blanchard no seu livro Um nível superior de liderança (Atual Editora), «fazer do mundo um lugar melhor requer um tipo de líderes especiais, capazes de agirem em proveito dos outros. Liderar é a capacidade de influenciar outros, libertando o poder e o potencial dos colaboradores e das organizações para alcançarem resultados de nível superior. Liderar não é só uma questão de alcançar resultados, muito menos que o líder pense exclusivamente em alcançar conquistas meramente pessoais. Liderar exige concentração numa Visão forte e em Objetivos ambiciosos, tal como preocupação com as pessoas que dirigimos e com os resultados a alcançar. Liderar a um nível superior é um processo para alcançar os resultados pretendidos, agindo ao mesmo tempo com justiça, respeito e preocupação com o bem-estar de todos os envolvidos». No mesmo livro, uma citação de Robert Greenleaf acrescenta que «os que rodeiam os líderes que agem em proveito dos outros ficam mais sábios, livres, autónomos, saudáveis e aptos a tornarem-se eles próprios líderes que agem em proveito dos outros».

Percebem agora?

Maus líderes geram o direito à indignação e vão provocando a consequente demissão da intervenção cívica necessária. Daí até nos tornarmos (quase todos) maus cidadãos é um pequeno passo. Impõe-se por isso reagir! Contem connosco.