Contra o resultadismo marchar, marchar

OPINIÃO16.11.202105:55

Não sei se vamos ganhar mais do que agora e não é isso que me preocupa. Antes há um problema mais importante para resolver. Preciso que me devolvam a vontade de ver a nossa Seleção

Aexigência começou por sentir-se no futebol de formação e estendeu-se ao futebol de seleções. Primeiro exigimos presenças em fases finais, depois exigimos finais, e a seguir exigimos títulos. O corolário desta trajetória foi a vitória no Europeu em 2016, uma conquista épica e memorável. Essa vitória deu-nos finalmente o que pedíamos e aquilo que entendíamos ser há muito merecido: uma taça do tamanho daquilo que nós vemos quando olhamos para os nossos futebolistas. Infelizmente, essa mesma conquista amaldiçoa o futebol português desde então

Até 2016, fomos muitas vezes uma das seleções que melhor futebol praticou nas qualificações e fases finais. Nunca trouxemos a taça, mas fomos muitas vezes a seleção favorita do público. Lidávamos mal com a derrota, mas a vitória moral e a nota artística de muitas exibições suavizavam o desfecho. Tudo mudou em 2016. Terminados os festejos após a final em Paris, a expectativa passou a ser só uma: saber quando é que ganhamos outra taça. Adeptos, jornalistas, patrocinadores, atletas e equipa técnica, todos aceitam este discurso com relativa normalidade. A vitória no Euro cristalizou-se na consciência coletiva como um desfecho natural para um grupo de jogadores tão talentoso como o nosso. É algo que se compreende até certo ponto, em especial nos atletas, dado que a maioria está habituada a conquistar títulos nos respetivos clubes. Forma-se por isso uma perceção de que a soma de partes habituadas a levantar troféus leva a uma inevitabilidade de ganhar.

Só há um problema: não foi por isso que fomos campeões europeus em 2016 e, passados mais de cinco anos, não estou certo de que saibamos exatamente o que ali aconteceu, mas tenho a certeza de que nem todos concordarão com esta leitura, nomeadamente na atual equipa técnica e na federação. Por esse motivo renovou-se com o selecionador nacional mais do que uma vez e o vínculo atual vigorará até 2024, imagino eu, na esperança de que Fernando Santos repita a fórmula de sucesso, fórmula essa que é impossível de replicar, porque não existe verdadeiramente. Se voltar a correr bem, o que raramente tem acontecido e dificilmente voltará a acontecer, iremos todos racionalizar o desfecho em função de decisões aparentemente acertadas, como se fez em 2016. Se correr mal, como tem acontecido demasiadas vezes, atribuiremos a Fernando Santos uma série de decisões aparentemente erradas. Nem uma nem outra leitura são totalmente justas. 
 

Fernando Santos levou Portugal ao título europeu em 2016. Agora tentará, através do ‘play-off’, conduzir a Seleção até ao Mundial 


Da mesma maneira que Fernando Santos não tem sabido explicar de forma inteiramente convincente alguns desfechos vitoriosos com esta seleção - a jogar como tem jogado - também não me parece que o selecionador compreenda exatamente o porquê de jogarmos tão mal. Se compreendesse, seria de esperar que fizesse mais para contrariar as dificuldades impostas pelos adversários. E também não me parece que compreenda exatamente como utilizar a quantidade pornográfica de talento que tem nas suas convocatórias. Teve largos anos de observação nos clubes e de estágios de seleção para perceber como poderia traduzir isso num estilo de jogo mais atrativo e fiel aos jogadores que treina. O que sobra então? Perante o deserto de ideias, Fernando Santos decidiu abraçar a vitória de 2016 como uma espécie de ideologia: «não importa se jogamos bem ou mal», só importa a convicção de que Portugal é um país predestinado a vencer (não é). É por isso que Fernando Santos continua convencido de que é a pessoa certa para conduzir estes jogadores, porque talvez sinta que é possível, ou até óbrio, repetir o que não se sabe explicar, cinco anos depois. Tudo decorre hoje desta abençoada e maldita final em Paris. As vitórias serão sempre retratadas como um passo natural num caminho imparável e as derrotas como um desvio momentâneo do único objetivo que interessa: o resultado. E sempre que nos pedirem para o caracterizar, falaremos de sofrimento mas nunca de diversão. É ao resultado que devemos vergar toda e qualquer esperança de nos divertirmos no processo e sermos finalmente do nosso tamanho, não apenas pelos jogos que ganhamos mas pela barbaridade que somos capazes de jogar. 

E, se é verdade que o resultadismo tomou conta de muitos treinadores, isso não tem correspondido a mediocridade exibicional em muitas outras equipas. Pensem no somatório de todas as experiências que vos trouxeram até este momento enquanto adeptos de futebol em Portugal, das futeboladas com amigos aos escalões jovens, passando pelos jogos das nossas equipas favoritas ou por aquilo que um português faz instintivamente quando lhe chega uma bola ao pé. Ninguém imaginou que a nossa identidade fosse reduzida à de uma equipa de operários abnegados que tudo fazem para segurar um resultado, mas que passam um jogo inteiro sem bola e sem capacidade de a recuperar? Sabem o que é uma seleção de ilusionistas e artistas sem bola? É um dos conjuntos de jogadores mais subaproveitados na história do futebol mundial. Vergá-los a um resultadismo cego é antipatriótico. Devíamos afastar-nos do domínio da discussão e assumir uma imposição: é necessário ajudar esta geração desenvolvendo uma identidade de jogo que seja pensada para eles, que tire partido do que eles são ao invés de os vergar a uma ideia de jogo sem ideia. 

Felizmente, temos tudo o que precisamos para guardar aquela noite de Paris na nossa memória e seguir em frente, incluindo treinadores portugueses cujo entendimento do jogo está muito mais próximo das características dos nossos jogadores. O nosso destino não é o de vencer todas as provas em que participamos. Basta dessa conversa. O nosso destino também não é seguir de empate em empate até à final. E é claro que importa se jogamos bem ou mal. Quem disser o contrário não percebe Portugal. Quanto ao resultado, sim, é bom quando se marca no minuto 109 de uma final. E sim, só se chega lá cuidando do resultado, mas torna-se cada vez mais evidente que não vamos voltar a viver um momento como esse se não voltarmos a pensar, primeiro que tudo, em jogar à bola. Sinceramente, não sei se vamos ganhar mais do que agora e não é isso que me preocupa. Antes disso, há um problema mais importante para resolver. Preciso que me devolvam a vontade de ver a nossa seleção. 

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