Contra o ódio, marcar, marcar
Que o Benfica saiba estar à altura do seu lugar de instituição maior do país, vencendo e vencendo bem, sem apelo nem agravo
NÃO foi há tanto tempo assim, mas hoje parece que aconteceu na minha infância. Eu explico. Estávamos na segunda semana do primeiro programa televisivo em que participei, dedicado à análise semanal da atualidade futebolística. Os benfiquistas tinham acabado de descobrir João Félix e estavam encantados com Bruno Lage, o mesmo por quem alguns meses mais tarde eu viria a criar a Igreja Lageana, um culto de veneração ao então treinador do Benfica que, como todas as piadas articuladas com excesso de confiança, acabaria por envelhecer mal. Mas, dizia, estava eu a estrear-me na televisão quando, em discussão seguramente acesa sobre coisa nenhuma que o justificasse, resolvo dizer ao meu colega portista que não só não tinha nada contra o Futebol Clube do Porto (é mentira, tenho muitas coisas contra o FCP) como até me lembrava bem de ter celebrado a sua vitória europeia em Gelsenkirchen (é verdade).
Senti-me bem quando disse aquilo. A TV tem um efeito inebriante, muito diferente dos outros meios em que já tive oportunidade de dizer o que penso. É muito mais fácil ser-se plasticina na TV, e é ainda mais fácil alguém convencer-se da importância estruturante do que está a dizer, em especial na semana de um programa em que 3 tipos perfeitamente normais mandam uns palpites sobre bola. Digo-vos isto porque naquele momento senti que o futebol português chamava por mim, que o telefone tinha finalmente tocado. Sabem aquela sensação que uma pessoa tem quando diz algo para se distinguir, não necessariamente por ser a primeira coisa que lhe ocorre, mas porque entende que é a coisa adequada a dizer? Pois bem, aconselho todos os leitores a nunca exagerarem nessa cerimónia se algum dia aparecerem na TV.
No dia seguinte recebi um telefonema muito simpático que nunca mais esquecerei. Disseram-me que tinha estado muito bem no geral, que ganhara desenvoltura em relação à primeira semana, que era importante gerir bem os momentos em que um de nós levantava a voz, «porque ruído a mais é má televisão», e que o programa parecia estar a ter boa aceitação. Fiquei satisfeito. Se calhar vai ser mesmo esta a minha vida, pensei eu. Quem diria, Vasco? Nunca tinhas imaginado, mas o comentariado televisivo escolheu-te. Aproveita os holofotes, recebe os elogios, abraça os insultos. Mereces as tuas duas horas semanais de fama. «Só há uma pequena coisa que tens de corrigir: por favor nunca mais digas em direto que celebraste uma vitória do Porto»! Eu ri-me e percebi logo o que tinha acontecido. Estava ali para que fizessem de mim plasticina, pelo menos em parte. E, antes que isto pareça uma espécie de história com um corolário moralista, devo dizer que nada vi de errado naquela consideração. O problema ali, descobri eu ao longo de muitos programas semanais, era eu que estava no sítio errado.
«Eu percebo que disseste aquilo com uma boa intenção e percebi o que querias dizer, mas sabes que isto não está desenhado dessa forma».
Ao contrário daquilo que por vezes se diz, os programas de comentário desportivo não são a origem dos males do futebol português, nem sequer estão perto de ser uma das principais causas dos problemas observados. Mas, por muito divertidos que às vezes sejam (e são), também não se pode dizer que ajudem a tornar o mundo melhor. Isso acontece porque a maioria serve apenas como câmara de eco dos ódios cultivados pelos próprios clubes. E isso acontece com ou sem cartilha, porque antes da cartilha dos clubes vem a cartilha das audiências, ainda mais inescapável.
Adeptos do Benfica vão marcar presença em grande número no Estádio do Dragão, para o clássico de sexta-feira com o FC Porto
Mas sobre tudo isto há dois ensinamentos que retiro destes últimos anos em que o futebol português não permaneceu imutável, mas antes se tornou ainda mais pantanoso: o primeiro ensinamento, como já partilhei, é que o problema era mais meu do que do programa em que eu comentava. O segundo ensinamento é que fumar o cachimbo da paz com quem nos quer ver enterrados é um exercício inútil. Não sou fã de guerras infinitas, mas também não acho que devamos ser parvos. Por esse mesmo motivo disse outras coisas que provavelmente também não devia ter dito na TV, chamando cancro a uma das personagens mais repulsivas do futebol português e assinalando várias vezes a cultura de ódio dominante. Hoje, devo fazer outra admissão igualmente honesta: se voltar a acontecer, muito dificilmente celebrarei uma vitória europeia do FCP. E não fui eu que mudei. Eu apenas sou um pouco mais velho e menos inocente. Já o FCP, ou quem lá manda, escolheu ser o mesmo de sempre.
Feitas as contas ao saldo de cada um dos clubes e dos protagonistas do nosso futebol, não se pode dizer que sejamos todos iguais. Há quem, entre os demais, contribua muito mais para o ambiente de ódio, agressão, intimidação, e constante contaminação do futebol português, quem viva melhor num clima de ódio, quem fomente a atitude que resulta em bonecos de árbitros pendurados pelo pescoço em viadutos, e quem escolha celebrar os seus títulos com cânticos dedicados às mães dos adeptos rivais. E há quem faça tudo isto com orgulho, enchendo uma avenida para o efeito. Antes que o leitor portista possa tresler, permitam-me fazer dois esclarecimentos: 1. Sim, estou a falar do Futebol Clube do Porto. 2. Não, não estou a falar de todos os portistas. No entanto, se algum portista quiser fazer uma generalização abusiva e enfiar a carapuça que pertence a vários dirigentes e funcionários do seu clube, sinta-se à vontade para o fazer. Só não me acuse de dizer uma coisa que eu não disse.
Claro que não é só por isto que gostava de ver o meu Benfica vencer o Futebol Clube do Porto na 6.ª feira. Mas ajuda a querer uma equipa de faca nos dentes, metaforicamente falando. O lirismo ensina-nos que a melhor resposta ao ódio é mais amor, mas quem diz isso não está a contar os minutos até às 20:15 da próxima 6.ª feira. Eu digo que a resposta ao ódio passa por jogar mais à bola do que eles, correr mais, meter mais vezes o pé, mandar em casa dos nossos rivais, e isso é algo que infelizmente o Benfica não tem feito vezes suficientes nas visitas ao Dragão. Que o Benfica saiba por isso estar à altura do seu lugar de instituição maior do país, vencendo e vencendo bem, sem apelo nem agravo, pelo Benfica e contra a cólera daqueles que, demasiadas vezes, escolhem a antítese do futebol. Contra o ódio, marcar, marcar.