Como se colocou uma ‘Palhinha’ na engrenagem

OPINIÃO18.03.202106:00

Não é necessário ser jurista, ou ter 100 cursos, para perceber que a transparência e a prevalência da verdade é a mais eficaz forma de credibilizar uma atividade

H Á uma norma, que descobri ontem por este jornal chamar-se Field of play doctrine, que consiste em algo muito simples: o que o árbitro decide em campo está decidido, mesmo que mais tarde se venha a revelar uma decisão errada.
Se me perguntarem se concordaria com este postulado, diria que sim… mas no tempo em que comecei a ver futebol. Nessa época, sentava-me em Alvalade, sobre uma almofada gentilmente oferecida pelo meu pai ou pelo meu avô consoante os casos, e assistíamos a uma partida. No seu decorrer, havia insultos (e mais do que isso) aos árbitros, que se aguentavam como podiam. Terminado o jogo havia discussões intermináveis sobre os lances mais polémicos. Mas não havia repetições em câmara lenta, ângulos diversos, câmaras de baliza. Nada disso! Era tudo a olhómetro. E o que o árbitro não via, ou não queria ver, não tinha contraditório com bases sólidas.
Nessas épocas remotas tudo era diferente. Infelizmente não sou novo e há cerca de 60 anos que ando ver jogos, de tal modo que ainda recordo o canto direto com que Morais, numa finalíssima em Bruxelas frente ao MTK da Hungria, deu a única taça europeia ao Sporting. Foi em maio de 1964, já lá vão quase 57 anos. Melhor me lembro, por dessa vez estar no Estádio, de um Sporting-Carl Zeiss Jena, um clube da então República Democrática Alemã, a parte hoje unificada com a Alemanha que era dominada por elementos pró-soviéticos. Estávamos em novembro de 1970; de repente as luzes do estádio apagam-se e, no meio da escuridão, só pontilhada por isqueiros acesos, ninguém sabe o que se passa no campo. Apenas que o árbitro mandara interromper a partida. Fica-se naquele estado um ror de tempo e, justamente quando as luzes se reacendem estava o médio sportinguista Fernando Peres (1943-2019), que aliás era um dos esteios dessa equipa, a trocar socos com Helmut Stein, médio da equipa contrária. O árbitro mostrou vermelho direto aos dois e, nesse momento, da pista de ciclismo do velho estádio, onde assistiam aos jogos adeptos deficientes, com cadeiras de rodas e aqueles triciclos a motor adaptados, sai um deles envergando a muleta e tenta agredir o árbitro. Entra a polícia, compõem-se as coisas, e o jogo termina com uma derrota do Sporting, e consequente afastamento da Taça dos Campeões Europeus.
Como se vê, nessa época, fazia sentido a tal doutrina do campo do jogo - o que o árbitro decidiu está decidido (ainda hoje não sei qual dos jogadores estava a defender-se de um ataque do outro; ou se o espetador que quis agredir o árbitro com a muleta, por estar noutro plano, viu tudo o que se passou). Imaginem hoje - com o VAR e as televisões a gravar quase sem luz - poder-se-ia chegar à conclusão que Peres ou Stein tinham sido injustamente expulsos.


DOGMATISMO

O que a FPF e o seu Conselho de Disciplina pretendem é que as regras sejam imutáveis, independente das possibilidades que a tecnologia traz. Ou seja, esquecem que a Field of play doctrine fazia sentido noutro tempo, para estabelecer a melhor aproximação à verdade. Essa, nunca seria a de um adepto, ou de um jogador, mas sempre a de um observador que se pretendia independente: o árbitro. E tomando este uma decisão sem que, no geral, houvesse modo de a contrariar objetivamente, a decisão prevalecia. Devo dizer que na História houve regras para sentenças e castigos bem mais subjetivas, como o ordálio, que deixava a decisão nas mãos de Deus através de vários processos estranhos (como atirar o suspeito a um poço).
A questão do pauzinho (neste caso Palhinha) nesta engrenagem reside, essencialmente, neste facto: a tecnologia permite que se veja a jogada com um pormenor que o tempo real impede; e ao mesmo tempo permite a um árbitro reconhecer que foi traído pela sua perspetiva do lance. Estas duas premissas juntaram-se, quando o jogador Palhinha recorreu para o TAD (Tribunal Arbitral do Desporto), interpondo uma providência cautelar suspensiva da sentença do CD no Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS). Fê-lo (claro que aconselhado e apoiado pelo Sporting)  por entender que tinha sido injustiçado, como aliás já se percebeu.
Como é óbvio, estamos perante um trapalhada jurídica, como este jornal ontem sublinhou, ao chamar Caos, em vez de Caso a esta telenovela. Os prazos que já são demorados, longos, tornando a eficácia das sentenças menos acutilantes, tenderão a prolongar-se em recursos e subtilezas jurídicas. Repare-se que, desta vez, foi a FPF e o CD a recorrerem para o TCAS; daqui, o perdedor do pleito pode ainda recorrer ao Supremo Tribunal Administrativo. Lá para 2025, com sorte, poderemos saber se Palhinha tem quatro ou cinco amarelos (e se é suspenso no próximo, ou voltou a zero); se devia ter jogado contra o Benfica ou não (e o Benfica coloca a entrada de Palhinha como um dos 45 pontos para o seu insucesso esta época, a par com o Covid e a derrota do Sporting com o LASK Linz); e se, de um modo geral, alguém ainda se lembra do que está em causa.
Uma via mais simples, para quem defende a transparência e a verdade é a seguinte: com o recurso à tecnologia, e quando não há dúvidas sobre um erro cometido, o árbitro tem de engolir o erro e ser admoestado por ele, salvo o tenha reconhecido, como, aliás, fez Fábio Veríssimo. Ou seja, a verdade e transparência têm de prevalecer sobre regras que faziam sentido… mas já não fazem. É assim, caros senhores (e senhora presidente) do CD: o mundo muda. E, como escreveu José Manuel Delgado no Editorial de ontem, a grande questão é escolher o modelo de justiça que se pretende. E, já agora, o que dizer do penálti assinalado a favor do SC Braga, contra o Famalicão, na passada segunda-feira? A culpa, a meu ver, não é do árbitro, mas, essencialmente do videoárbitro que deve ter visto o mesmo que nós. E o jogador que simula, não tem castigo?
 

Palhinha viu um cartão amarelo no Bessa que continua a dar muito que falar


CHEGA O DINHEIRO 

Osecretário de Estado da Juventude e Desporto, João Paulo Rebelo, pessoa que conheço bem e me é simpática (além de ser de Viseu, terra dos meus antepassados todos), anunciou uns milhões para o desporto. E disse mais: que queria colocar Portugal «entre uma das 15 nações da Europa com mais atividade física e desportiva».
Se o meu amigo João Paulo me permite um conselho, mande o dinheiro da Estratégia Portugal 2030, na qual se privilegia o desporto, mas não coloque metas tão ambiciosas. Claro que, teoricamente, é possível estarmos entre os 15 países da Europa com melhores índices no desporto. Só no futebol estamos muito acima desse 15.º lugar. E se falarmos em triplo salto, neste momento, somos campeões europeus masculinos e femininos. Outras modalidades, como o remo, o judo, mesmo o ténis de mesa, o futsal, futebol de praia e, agora, o andebol, com o extraordinário e inédito apuramento para os Jogos Olímpicos, fazemos boa figura. Mas o problema, meu caro, o grande problema é que (salvo no futebol) temos figuras que sobressaem, mas não escolas que assegurem a continuidade no futuro. Claro que todas as modalidades estão muito melhor do que eram há uns 30 ou 20 anos, mas o principal esforço deve-se aos clubes e às autarquias que construíram dezenas de infraestruturas. O que nos falta, caro secretário de Estado? A resposta, para mim, é clara: desporto escolar e condições para o fazer. Com a pandemia, claro que não existem; mas antes dela era algo de muito insuficiente… e esperemos para ver o que será depois dela. Sem ritmo, competição e treino a sério no desporto escolar - em todas e quaisquer modalidades que possam ter acesso, do xadrez ao badminton, passando pelo futebol e pelos desportos mais populares - nunca sairemos do que temos. Já agora, se fizerem algo nesse sentido, por favor não voltem a discriminar o público em relação ao privado. Por exemplo, a haver competições, que seja para todos.


ANDEBOL

É impossível esconder a emoção de ser apurado para os JO no último jogo e no último segundo, numa altura em que ainda se cumpre o luto pelo falecimento súbito do guarda-redes da seleção, Quintana. Todos de parabéns, incluindo o selecionador, Paulo Jorge Pereira, que quer continuar a ser maluco e a ganhar tudo.


ALCOCHETE

Nuno Mendes e Palhinha na Seleção A. Orgulho para o Sporting e para a sua Academia… e isto fora os outros sportinguistas que integram seleções de idades inferiores. O trabalho compensa.


OLIVEIRA

O cronista de A BOLA que jogou no FC Porto e tem lá a alma, mas que fez muito também pelo Sporting, no seu texto de ontem disse tudo o que havia a dizer sobre o caso Rúben Amorim: «A lei em vigor está fora de jogo.» Bem haja, com fair play e conhecimento o sentido de justiça fica mais apurado.