Bielsa e João Félix
João Félix (IMAGO)

Bielsa e João Félix

OPINIÃO09.07.202409:18

A rábula perdeu força quando todos percebemos que outros treinadores, que não Diego Simeone, produziram em João Félix exatamente o mesmo efeito

A reflexão mais interessante dos últimos tempos sobre o futebol moderno aconteceu na improvável cidade de Paradise, no estado do Nevada, onde a seleção do Uruguai acabara de disputar os quartos de final da Copa América, tendo levado a melhor nos penáltis. Explicou Marcelo Bielsa: «O futebol tem cada vez mais espectadores e é cada vez menos atrativo. Se não garantirmos que o jogo a que as pessoas assistem é agradável, isso beneficiará apenas o negócio. Mas ao negócio só interessa saber quantas pessoas assistem ao jogo.»

A inspiração que faltou aos jogadores, co-responsáveis por mais um jogo de futebol bastante chato entre o Uruguai e o respetivo adversário, nunca falta a Bielsa quando tem que produzir reflexões de caráter geral sobre o futebol. Há alguns anos que o Bielsa treinador é menos interessante do que o Bielsa comentador de futebol, mas as suas palavras dão gosto ouvir e contêm algumas verdades em que vale a pena pensar, mesmo que em nenhum momento Marcelo Bielsa pareça lembrar-se que foi a evolução deste mesmo modelo económico que o tornou milionário e lhe permitiu ter uma experiência pessoal e profissional, ao serviço do futebol, inalcançável pela maioria das pessoas.

Poderia dizer-se que Bielsa é um revolucionário que opera a mudança a partir de dentro, mas também não é bem verdade. As equipas de Bielsa também correspondem mais vezes ao futebol chato e uniformizado do que o próprio parece ser capaz de admitir. Não invalida, por isso, que o próprio se considere um dos culpados pelo estado atual do futebol, ainda que Bielsa não tenha reconhecido isso durante uma conferência de imprensa que levou todas as pessoas nascidas antes de 1995 a suspirarem por Romário, Ronaldinho Gaúcho, Adriano, Rivaldo, e outros que tais, e todas as pessoas nascidas desde então a perguntar de que raio está Bielsa a falar.

Enquanto membro integrante do primeiro grupo, sinto que devo usar o meu enviesamento natural para discorrer sobre João Félix, jogador agora conhecido como jovem irresponsável e grande culpado pela eliminação de Portugal no Euro-2024. O futebol que conhecemos nasceu no apaixonante Cruyff, com o objetivo de desenhar sucessivos triângulos no relvado até uma equipa marcar mais golos do que o seu adversário. Desde então, a coisa tem evoluído com múltiplos discípulos mais ou menos óbvios, de Guardiola a Klopp, e fez com que o futebol transformasse, gradualmente, jogadores como João Félix em personagens sem pátria técnico-tática, situados entre o génio e o indolente, mas sem direito a serem ambas as coisas. Essa conquista da sociedade foi perdida há algum tempo e, lamento informar, os estádios continuaram cheios e o futebol continuou a crescer. Isso acontece porque o futebol continua a preservar inúmeras formas de ser interessante, seja por via do seu atleticismo, seja por via da propaganda digital que tornou os modelos táticos rígidos da atualidade uma espécie de crescendo musical que já todos sabemos como acaba mas não nos cansamos de ver e dissecar (Guardiola sem Messi, Klopp na idade adulta, Xabi Alonso a cristalizar-se), ou ainda porque esses mesmos modelos aparentemente rígidos também produzem equipas frequentemente avassaladoras e caóticas (vale a pena ouvir os jogadores treinados por Ancelotti).

O que parece ter morrido mesmo foi a possibilidade de alguém, num jogo a sério — daqueles que estão a destruir o futebol, mas que toda a gente vê — ser apenas João Félix. Contra mim falo, que o acho genial mas também irritante. Jogadores como Félix perderam o direito a serem simultaneamente geniais e preguiçosos. A única forma de os tolerarmos é se trabalharem para o coletivo, mesmo que o coletivo nem sempre trabalhe para o indivíduos. Tornou-se hábito, nos últimos anos, falar de Diego Simeone como uma espécie de monstro que atrofiou João Félix quase ao ponto da invalidez permanente. A rábula perdeu força quando todos percebemos que outros treinadores produziram em João Félix exatamente o mesmo resultado. Os seus momentos de genialidade são frequentemente definidos como demonstrações cabais daquilo que pessoas como Bielsa dizem faltar ao futebol. Os momentos em que se desliga do jogo, porque nem sempre está para se chatear e a vida é mesmo assim, são aqueles em que sentenciamos Félix a ser só mais uma esperança que sucumbiu perante a sua própria falta de profissionalismo.

Desengane-se o leitor se acha que eu sei como é que saímos disto. Acho que não há escapatória possível, a não ser que se abdique da vontade de ganhar no futebol atual. Se o leitor tiver uma equipa ou uma seleção favorita, pensará duas vezes antes de aceitar o suicídio competitivo em prol de uma dimensão primordialmente estética. Cederá ao seu instinto mais primário, na versão atualizada, que é o de questionar por que raio João Félix não é melhor a reagir à posse, a bascular, a fazer outra coisa qualquer com nome de procedimento cirúrgico, ou, no fundo, tarefas que antes eram destinadas ao proletariado. O tipo futebol que João Félix exibe meia dúzia de vezes a cada 90 minutos foi possível enquanto tolerámos jogadores que não estavam dispostos a fazer tanto quanto os treinadores lhes pediam, mas que compensavam da única forma que sabiam, muitas vezes tornando o seu antídoto para o aborrecimento durante um jogo de futebol um poder muito superior ao do treinador. E este que se amanhasse perante as evidências. Hoje, confiamos no treinador para domesticar esse atleta até que ele dê menos toques na bola.

Mas, ao contrário do que diz Bielsa, quase ninguém se afastou do jogo por causa disto. A ideia feita de que as pessoas se estão a afastar da modalidade não tem adesão à realidade. Podem consumi-lo de forma diferente, sim, como Bielsa também afirma. Cientes de que um jogo de futebol tem muitos mais momentos chatos do que emocionantes, optam por ver resumos. E quem somos nós para lhes impor outra experiência, se até nós mais velhos nos aborrecemos de morte com tantos jogos? O que acontece é que aprendemos a ver uma modalidade um pouco diferente, ditada hierarquicamente pelos treinadores que, ao longo das últimas décadas, passaram mais tempo a pensar nisto, a pensar fundamentalmente como maximizar o seu ganho desportivo e dar alegrias aos adeptos do clube que lhes paga. São pessoas com uma inteligência prática e teórica acima da média que, munidas da muita informação disponível, chegaram à conclusão de que só conseguiriam ganhar mais vezes se tornassem o futebol menos dependente do génio e mais da realização de uma série de tarefas com maior ou menor qualidade estética. São também os indivíduos responsáveis pelos melhores jogos de futebol dos últimos muitos anos, dos que nos fazem querer ver o seguinte, até darmos por nós a questionar as nossas escolhas de vida num jogo da Liga portuguesa numa segunda-feira à noite.

Bielsa argumenta também que, neste processo, se perdeu uma dimensão de identificação de uma nação ou de um clube de futebol. Acho que há múltiplas dimensões que permitem fazê-lo e muitos clubes cujas identidades se renovaram em função de treinadores modernos, mas consigo sentir a sua dor. Só há um pequeno problema. Não conheço Benfiquistas nem portugueses suficientes que estejam dispostos a participar numa experiência social em que, ao longo de um ou mais anos, testamos a hipótese de jogarmos sempre mais bonito, mas perdermos quase sempre. Essa vitória moral pode ser boa em alguns manifestos de redes sociais e conferências de imprensa, mas do comunicado enviado à CMVM para informar da rescisão do contrato não rezará a mesma história. E, por muito que custe aos líricos, todos convivemos alegremente com esse jogo.

Em suma: se o futebol moderno pudesse ser tão lírico como Bielsa o imagina, o selecionador do Uruguai não teria abordado o jogo com um cinismo eficaz que agora lhe permite disputar as meias-finais. Talvez o cinismo seja um traço definidor dos uruguaios e o jogo pelo qual ficou acordado madrugada dentro seja um hino à essência de ser uruguaio com uma bola nos pés, mas tenho as minhas dúvidas. O facto é que até Bielsa sabe que o futebol romântico pelo qual ele suspira é avistado cada vez menos vezes, inclusivamente nas suas equipas, e se tornou uma nota de rodapé. A Geórgia não quer ser uma seleção caótica e fofinha no meio de outras 23 com boa organização e grandes transições defensivas. A Geórgia quer competir, e é na medição rigorosa desse esforço que ganhará o respeito dos seus cidadãos. Os Camarões não voltarão a jogar em 2x3x4x1 com Roger Milla a dançar lá à frente.

Sei que é um exercício cruel, porque falo do país e de alguns dos jogadores que mais tempo passei a ver jogar, mas até a Holanda de Cruyff, que em 1974 parou o mundo para mostrar a todos o seu futebol total, perdeu a final como tantos outros antes e depois. A influência produzida por essa ideia de jogo perdurou e perdura, com a ligeira nuance de ter sido apurado para garantir o máximo de vitórias possíveis, que ainda são a melhor razão para nos embebedarmos.

Só sairemos daqui se o futebol encontrar algo que hoje me parece impossível: uma forma de monetizar a identificação cultural por via da bola no pé, ao estilo de uma Eurovisão em que o último classificado olha sorridente para a câmara, incapaz de ficar triste porque perdeu, mas antes sorridente porque aconteceu. Ou talvez todos protestemos até o futebol se tornar outra coisa qualquer, ou talvez voltemos a apoiar a equipa da nossa aldeia, porque o importante é somente estar com os amigos. Enquanto nada disso acontece, oremos pela evolução da espécie para que permita o aparecimento de uma próxima geração de génios, ao dispor de todos os clubes e treinadores, tão brilhantes que serão capazes de reagir à posse como um operário e encantar como um João Félix. Temos tempo e vamos esperar, naturalmente, sentados — numa bancada qualquer, a exigir menos conversa e que o jogo prossiga.

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