As alegrias que nos mudam para sempre
João Oliveira Pinto a festejar o título de campeão do Mundo de sub-20 por Portugal, em 1991

As alegrias que nos mudam para sempre

OPINIÃO13.02.202409:20

Recebo uma notificação vinda do mundo do aqui e do agora. Era a tristíssima notícia do falecimento de João Oliveira Pinto

Num mundo que desespera por atualizações do Fabrizio Romano, acho que há uma geração mais angustiada do que as outras. Não tenho nenhuma certeza sociológica sobre o assunto, mas suspeito que é a minha, a geração de 80, é a que mais sente essa transição entre a experiência analógica e a experiência digital. Tenho uma convicção inabalável de que o acesso à internet foi, simultaneamente, uma das melhores coisas que já me aconteceu na minha relação com o futebol, e também uma das piores.

Por um lado, garantiu o acesso a uma série de experiências, pessoas, conteúdos, e até oportunidades para dizer aquilo que penso. Nunca teria tido a oportunidade de escrever aqui se não existisse internet ou redes sociais. Por outro lado, a internet tornou-se indissociável da minha dieta de conteúdo, mas de uma forma nociva. Dizem que os algoritmos podem ser treinados e o que se aplica a mim não será exceção, mas constato que o meu (algoritmo) me expõe a quase tudo o que é irrelevante e a cada vez menos do que interessa. Algures entre aquilo a que sou exposto online e esqueço segundos depois, e tudo aquilo que é mais importante mas raramente recordo, existe um abismo cognitivo. Uma vez por outra, lá sou lembrado do adepto que já fui e posto à frente de um espelho onde vejo o adepto que sou hoje. Às vezes, somos lembrados da pior forma possível.

30 de junho de 1991. Faltavam três dias para fazer 10 anos quando Portugal foi campeão mundial de sub-20 num Estádio da Luz a rebentar pelas costuras. Foi um dos dias mais importantes da minha primeira década de vida. Lembro-me da manhã e da tarde, de ter lido jornal, lembro-me do pré-jogo, lembro-me de ter pensado que o mundo se faria ou desabaria nesse dia, lembro-me dos penáltis, e lembro-me dos nomes de todos os jogadores. Lembro-me que foi a primeira vez em que formei uma opinião concreta sobre Portugal. Parecia impossível que um ponto pequeno no mapa mundial pudesse ter ganho aquela competição. Parecia e parece. Ainda hoje me impressiona ver a improbabilidade estatística em que Portugal se tornou, futebolisticamente falando, nos últimos 35 anos.

Nesse dia 30 de junho, senti que o país se tinha tornado muito maior - e tornou, mesmo que não soubesse bem porquê. Mas a cabeça de uma criança não está aí. Tudo aquilo era sobre os jogadores e sobre a paixão que tinham despertado ao longo da competição. Dos titulares aos suplentes, todos me pareciam agora deuses da modalidade, o que tornou o dia seguinte um acontecimento extraordinário da minha infância. Era perto do meio-dia quando o Eduardo, um vizinho amigo da minha idade, tocou à campainha. O Eduardo tinha tido o privilégio de assistir ao jogo no estádio e trazer de lá um objeto inimaginável para uma criança de 9 anos. Era uma das luvas do Brassard, o guarda-redes titular da seleção campeã do mundo. Não foi preciso pedir. O Eduardo queria mostrar o tesouro aos amigos e partilhá-lo. Tive que tirar uma fotografia com aquela luva gigante colocada na minha mão. A foto ainda existe e às vezes olho para ela, num misto de reconhecimento e dúvida sobre quem ali está.

Não me lembro de ter deslumbramentos com ídolos em criança, mas esta situação andou lá perto. Naquela altura ninguém sabia que alguns destes jogadores viriam a tornar-se referências do futebol português, mas foi isso mesmo que aconteceu. Quem os viu na final de 1991 sente que foi ali que tudo começou. Mesmo que, anos mais tarde, alguns já estivessem nos melhores clubes do mundo, o vínculo especial não se desapareceu. Acompanhei os jogadores mais sonantes e continuei a acompanhar os mais discretos, como se partilhássemos um vínculo especial, como se lhes devesse lealdade. Acompanhei-os como se fôssemos todos membros da geração de ouro - os adeptos que os viram jogar e vencer aquele jogo, e os que estiveram dentro de campo.

Durante largos anos, ainda que não racionalizasse a coisa, senti que avançávamos juntos nas nossas vidas, eu um miúdo a tentar compreender o mundo à sua volta, e estes jogadores a fazerem pela vida num futebol que tardava em reconhecer os futebolistas jovens. Fomos ambos ficando mais velhos e tudo mudou desde então. O futebol tornou-se muito mais aquilo que acontece aqui e agora, e muito menos o caminho feito para chegar a um sítio. Ainda vou acompanhando as carreiras desta geração e entusiasmo-me sempre que alguém descobre onde pára um dos convocados.

Já não sinto que estejamos a avançar juntos, mas, mais de 30 anos depois, tropecei na minha própria infância pelo pior dos motivos. Recebo uma notificação vinda do mundo do aqui e do agora. Era a tristíssima notícia do falecimento de João Oliveira Pinto, um dos jogadores do grupo mítico dos sub-20.

Nos últimos dias, senti que não havia mais nenhum assunto sobre o qual me apetecesse escrever. Estou um pouco mais velho e bastante mais cínico em relação ao meu desporto favorito. O futebol continua a ser esta coisa que se interseta com a minha vida de uma forma muitas vezes difícil de explicar. É a tal coisa mais importante das menos importantes. Feitas as contas, devo-lhe um pouco do que sou. E isso deve-se a duas coisas: aos que encontrei na bancada e aos que tive o privilégio de ver dentro de campo e acompanhar ao longo de todo aquele tempo estranho em que, sem nos conhecermos de sítio nenhum, avançámos juntos.

À família e aos amigos do João Oliveira Pinto, os meus sentimentos. Espero que este texto possa ser lido como um sentido agradecimento do tal miúdo de 9 anos que agora é um pouco mais velho, mas que nunca se esqueceu das alegrias que aquela final lhe deu, das alegrias que me mudaram para sempre.