A nossa arbitragem devia ir ao VAR

OPINIÃO15.03.202206:00

Pedidos dos clubes para o acesso às comunicações entre o árbitro e o VAR são ignorados até o tema desaparecer do ciclo noticioso

FALAR do estado da arbitragem em Portugal é um convite à confusão e uma batalha perdida. Talvez por isso seja um dos subprodutos favoritos do país. É possível que o leitor não tenha reparado, mas defini uma regra inusitada para os meus textos: evito falar sobre os outros clubes, porque me interessa muito mais o meu, e evito falar sobre árbitros, porque gosto de pensar que, se todos fizessem como eu, talvez os árbitros se apresentassem a melhor nível (é provável que esteja enganado).

Evito o tema da arbitragem porque, apesar de ser uma parte fundamental do jogo, a simpatia clubística me impede de ser consistente ou minimamente sério na análise. Não vale a pena tentar, leitor, porque se o fizer dará por si a embandeirar num exercício altamente ilusório que o irá convencer da sua isenção. É mentira. Não sei se já registou as suas opiniões acerca de decisões de arbitragem. É pouco provável que o tenha feito, porque há atividades bem mais interessantes. Eu decidi fazê-lo durante algum tempo enquanto comentador semanal na televisão. O resultado foi um critério tão largo como a Avenida da Liberdade que, nove vezes em cada dez, favorecia o meu clube.

Atenção: se me perguntassem em direto na TV eu negava veementemente, defendendo a singularidade do lance em análise, indiferente à minha própria figura. O que me leva ao segundo motivo para evitar análises de arbitragem: o bate-boca que habitualmente se segue sempre que há um adepto de outro clube grande presente. É um esforço inútil que desencadeará a mais acesa discussão, para chegar a nenhum resultado que sirva ambas as partes. O que me leva ao primeiro de vários problemas da arbitragem em Portugal: a relação que os adeptos têm com o tema. Toda a gente sabe a resposta a esta, mas quase nunca é dito. Em Portugal a arbitragem só está mal quando o nosso clube não está no primeiro lugar. Se o Benfica, o FC Porto ou o Sporting estiverem à frente, sabemos que todas as exibições da nossa equipa justificam a vitória e tudo se desculpará ao árbitro que decidiu a nosso favor. «Talvez não tenha visto bem o lance»; «As câmaras do VAR não permitem ter a certeza.»; «É preciso compreender que são decisões tomadas em frações de segundo»; «Vocês também querem ver suspeição em toda a parte!»; «Falta cultura desportiva neste país!». Ou isto ou o seu contrário.

Este é o momento em que alguns adeptos dirão que o texto aqui publicado só existe porque houve um caso de arbitragem num jogo do Benfica. Confirmo. O motivo é esse, mas não me verão dizer que o Benfica só não é campeão por causa das arbitragens, até porque essa contabilização de decisões certas e erradas é um exercício deprimente que nos remete para o domínio das vitórias morais, conceito que jamais irá encher o Marquês de Pombal em Maio. Mas, mesmo sabendo que não é realmente por esse motivo que o Benfica se encontra em terceiro lugar, apetece-me dizer algumas coisas sobre a arbitragem e o porquê de me parecer uma causa perdida, como tantas outras no futebol português. Tão cedo não voltarei ao tema.
 

Vasco Mendonça recorda penálti «flagrantíssimo» por assinalar a favor do Benfica

A arbitragem em Portugal sofre da mesma opacidade encontrada no futebol português. As décadas de desconfiança alimentadas por SADs, dirigentes, empresários, fundos, investidores e quem mais participa nesta festa criaram uma cultura que é encontrada em toda a parte, incluindo na arbitragem. Ninguém sabe muito bem quem são os seus dirigentes, porque é que estão lá há tanto tempo, pouco se sabe sobre o funcionamento dos seus organismos, e, perante as muitas e justificadas críticas de clubes ou adeptos, age-se quase sempre como se nada tivesse acontecido. É a imagem do nosso futebol: enquanto tudo se movimenta no domínio da aparente legalidade, ninguém tem de prestar contas. É por isso que os múltiplos pedidos dos clubes para o acesso às comunicações entre o árbitro e o VAR são ignorados. Perante uma oportunidade de tornar o nosso futebol mais transparente, escolheu-se o mesmo caminho de sempre. Se choverem críticas, a tática será sempre a mesma: ignorar até o tema desaparecer do ciclo noticioso.

Independentemente do passado do futebol português, prefiro pensar que os árbitros erram porque são pouco competentes. O défice de competência combate-se com melhor formação e maiores incentivos à competência. O que sabemos sobre isto? Quase nada, ou que quase nada é feito. E também se combate com uma maior penalização dessa incompetência, especialmente quando esta é grosseira. Todos sabemos que os árbitros erram, e só posso concluir que os seus dirigentes veem o mesmo que nós. Assim sendo, pergunto: que propósito serve a complacência nesta atividade profissional? O que esperam os líderes da arbitragem que pense o adepto comum quando tantos erros se sucedem e pouco ou nada acontece ao percurso de um árbitro? Ninguém duvida que a proteção do árbitro é importante, mas justifica prejudicar todos os outros participantes no jogo? O que esperam que um adepto pense quando, perante os erros, a reação destes organismos seja quase sempre corporativista e incapaz de reconhecer a necessidade urgente de fazer melhor? Quantas vezes se viu um organismo desportivo em Portugal reconhecer a necessidade urgente - ou até o dever - de fazer melhor? Mais uma vez, é um tique comum do nosso futebol achar-se melhor do que é verdadeiramente.

A violência exercida sobre os árbitros foi normalizada e é justificada por muitos. Perseguições de anos nas redes sociais, insinuações vindas de todos dirigentes, comentadores e adeptos, vandalização de propriedade privada, visitas não autorizadas no local de trabalho, coação em pleno relvado, constantes agressões verbais e até mesmo agressões físicas. Pode parecer grave, e é, mas se alguma destas coisas acontecer muitos adeptos dirão que o árbitro se pôs a jeito. Veremos umas condenações verbais dos atos praticados, uns comunicados de umas associações, meia dúzia de pessoas muito satisfeitas com a moralização do futebol português em curso, e no dia seguinte acontece tudo novamente. Resta-nos esperar que os árbitros continuem iguais a si próprios e imperturbáveis em campo após viverem situações como estas. É um cenário que me parece altamente improvável. Basta colocar-me no lugar dos visados por estes ataques. Faz-se pouco para defender os árbitros deste tipo de episódio. Aliás, já faz parte da descrição de funções para quem quer que se candidate a este emprego.

A comunicação da arbitragem em Portugal é uma oportunidade perdida. Não há maior reconhecimento da sua incompetência do que ser incapaz de ter uma relação de maior abertura com os adeptos. Se é verdade que o clima de hostilidade permanente dificulta essa abordagem, não é impossível pensar que a própria arbitragem podia contribuir para desmontar as narrativas de bons e maus usadas para organizar mentalmente o futebol português, dependendo do clube que se apoia. Mas, para que tal aconteça, é preciso ser consequente no compromisso de ser melhor em todas as áreas da arbitragem e não apenas usar a comunicação para fazer o que os restantes agentes do futebol fazem: impor a sua narrativa contra a dos outros.

Parece-me evidente que os nossos árbitros apitam com mais facilidade em favor dos três grandes. É uma espécie de convenção que deveria ser abandonada, se realmente se quiser tornar esta atividade mais competente e mais respeitável. Mas não convém ir de um extremo ao outro. As suspeitas que recaíram sobre o Benfica nos últimos anos parecem indicar um condicionamento que prejudica o clube. Admito que esta seja apenas uma leitura, mas, se reconhecemos a importância de tantos outros fatores externos, não se pode ignorar esta possibilidade. A solução será sempre a mesma: mais competência, mais transparência, melhor comunicação. Será que é pedir assim tanto?

O uso de tecnologia no futebol surgiu para reduzir ou eliminar a dúvida acerca das decisões de arbitragem, mas em Portugal serve apenas para agravar o clima. A comunicação do Benfica faz bem em partilhar a sua/nossa revolta e deve exigir mais esclarecimentos, mas a situação que se passou na sexta-feira, em que um penálti flagrantíssimo ficou por assinalar, não devia preocupar apenas os adeptos ou os dirigentes do Benfica. Eu sei que é difícil abandonar as rivalidades, mas neste caso acho que faria bem a todos. Se assim não for, teremos o futebol que merecemos.