A Federação Portuguesa de Futebol e o brandy Constantino!...
Quem conhece todos estes princípios que regem as federações desportivas não pode deixar de ficar perplexo perante o contrato que a FPF terá celebrado com Fernando Santos
ESTAVA eu sentado numa das muitas esplanadas que hoje Lisboa tem ao redor daqueles quiosques tão tradicionais da minha infância, tomando um café e uma água, e lendo este jornal, que me permite todas as semanas emitir a minha opinião, quando na mesa ao lado se sentou um senhor, mais ou menos da minha idade, de fato e gravata, que demandou o empregado sobre a existência ou não de brandy Constantino e, em caso afirmativo, que lhe trouxesse um.
Curiosa e coincidentemente, estava a ler notícias sobre a Autoridade Tributária, a Federação Portuguesa de Futebol e o contrato entre esta e o seleccionador/treinador e a sua equipa técnica e as consequências de tudo isto, designadamente o resultado de uma arbitragem, não do Conselho de Arbitragem/Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), mas de um Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária.
E digo, por coincidência, porque esta relação da FPF com o seleccionador/treinador nunca foi a mais saudável, muito menos correcta, sob o ponto de vista jurídico, isto é, a fama desta já vem de longe como o brandy Constantino!...
Reporto-me à segunda metade dos anos oitenta, designadamente, aos anos de 1986 a 1990, em que Juca foi o seleccionador/treinador, tendo como seu adjunto João Barnabé, meu prezado e estimado amigo, e ao conflito resultante da natureza da relação jurídica entre a FPF e os treinadores e selecionadores. Apesar das evidências de que se tratava de um contrato de trabalho, a FPF sempre se recusou a admitir isso, excepto quando era obrigada a tal, a bem ou a mal. Eu estive envolvido nesse conflito, enquanto advogado dos dois treinadores citados, e iniciei uma luta que continuou com Carlos Queiroz e sua equipa técnica, contra uma Federação que sempre quis ver no seleccionador um prestador de serviços e não um trabalhador por conta de outrem ainda que com autonomia técnica. E tudo isto sob o silêncio cúmplice da Associação Nacional de Treinadores, que embora associação sindical com o objetivo declarado da defesa dos trabalhadores (treinadores) é hoje, por virtude dessa cumplicidade, sócio da FPF e, portanto, participante da Assembleia Geral desta. É esta a independência de uma organização sindical que, por natureza, se diz independente e, como tal, devia agir.
O selecionador nacional, Fernando Santos, e o presidente da FPF, Fernando Gomes
A FPF chegou ao ridículo de sustentar num tempo em que Norton de Matos era adjunto de Artur Jorge, seleccionador nacional, que aquele não era empregado da FPF, mas de Artur Jorge. Também estive envolvido, à semelhança dos casos anteriores, enquanto advogado de Norton de Matos, e fui obrigado, para que esta mentira não triunfasse, a pôr uma acção do trabalhador Norton de Matos contra o patrão, Artur Jorge, para desmascarar esta aldrabice que não honrou a FPF!
Passados estes anos, temos o caso de o cargo de seleccionador/treinador ser exercido por uma empresa e as funções, daquele ou desta, serem exercidas, tendo, como adjuntos outros sócios de outras empresas! Não tenho nada contra Fernando Santos, nem contra os seus adjuntos, sendo o problema da consciência deles, e, em matéria fiscal, não sei quem é que tem consciência para além da consciência que todos temos da elevada carga fiscal que pesa sobre todos nós!
Contudo, não posso ficar indiferente quando do outro lado de um contrato, que aliás não conheço, está a Federação Portuguesa de Futebol, dotada de utilidade pública desportiva, com as consequentes obrigações perante o Estado e o País.
Por isso, quando cheguei a casa, fui recordar a legislação que não existia até 1990, e que de algum modo podia desculpar o comportamento da FPF, embora a falta de ética subjacente. Mas, hoje, já ninguém ignora a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto que afirma que «a actividade desportiva é desenvolvida em observância dos princípios da ética», com o qual, em minha opinião, esta situação não parece coadunar-se, e é desconforme com o estatuto de utilidade pública desportiva.
Por outro lado, a Federação Portuguesa de Futebol, enquanto federação desportiva, tem a prerrogativa de conferir «os títulos desportivos, de nível nacional ou regional» - o que, aliás, não faz com coerência, mas segundo as conveniências do momento - e o exclusivo de organizar as selecções nacionais, o que aliás faz de forma original, não o fazendo, na parte técnica, com trabalhadores seus, mas em outsourcing, o que é, no mínimo ridículo.
Acresce que o estatuto de utilidade pública desportiva confere à FPF poderes de natureza pública que não são compatíveis com a celebração de contratos que não primam pelo cumprimento de princípios que são impostos pela lei, designadamente, «a transparência e regularidade da sua gestão».
Diz mais esta lei da Assembleia da República que «a fiscalização do exercício dos poderes públicos, bem como do cumprimento das regras legais de organização e funcionamento internos das federações desportivas é efectuada, nos termos da lei, por parte da Administração Pública, mediante a realização de inquéritos, inspecções e sindicâncias». Parece que a Autoridade Tributária encontrou algumas falhas na fiscalização do seu exercício de funções públicas, mas há quem assobie para o lado!...
Por outro lado, terá a Federação Portuguesa de Futebol autoridade moral para punir, num sentido lato, os clubes ou outros dos seus filiados, que não cumprem com obrigações fiscais?
Finalmente, e, quanto a mim, mais grave, é que, nos termos da lei, «a participação nas selecções ou em outras representações nacionais é classificada como missão de interesse público e, como tal, objecto de apoio e de garantia especial por parte do Estado», e, nesta conformidade, a FPF beneficia de apoios ou comparticipações financeiras por parte do Estado, isto é, do dinheiro de todos nós!...
Todos estes princípios se encontram consagrados no regime jurídico das federações desportivas, pela qual a Federação Portuguesa de Futebol se rege ou deveria reger.
Quem sabe e conhece todos estes princípios que regem as federações desportivas não pode deixar de ficar perplexo perante o contrato que a FPF terá celebrado com Fernando Santos ou com a empresa e os que este terá celebrado com as empresas dos seus adjuntos. Não por causa de Fernando Santos, ou dos seus adjuntos, que defende os seus interesses e, portanto, tem todo o direito a receber a quantia líquida que entender sem ludibriar o Fisco, mas sim da Federação Portuguesa de Futebol que arquitecta um contrato que não tem qualquer sentido face à realidade de uma relação de trabalho subordinado, com as consequências legais, que a FPF tem a obrigação de respeitar, por lhe serem conferidos poderes de natureza pública e entregas de dinheiro público. O que acontece é a falta de coragem dos governantes para contrariar estas situações, porque ela obtém resultados no campo e para os políticos é importante a fotografia na hora da vitória. E é por isso que ninguém se importa com aquela sopa da pedra da Assembleia Geral da FPF onde se cruzam os interesses sindicais e patronais, em nome do desenvolvimento do futebol. É por isso que este verdadeiro albergue espanhol todo se indignou porque o líder da equipa técnica do Sporting tem de ser um treinador do nível quatro, fazendo alarde de uma autoridade moral para considerar que o Sporting tinha cometido uma fraude, quando afinal fraudulenta é a relação que se mantém com os treinadores da Seleção Nacional. Deviam ter vergonha do que fizeram e disseram, mas como não têm, mantêm-se todos agarrados àquela caldeirada de assembleia, em que todos têm teoricamente interesses diferentes, mas que, na prática, têm todos o mesmo interesse: o poder pelo poder.
Tal como a do brandy Constantino, a fama do sistema da Federação Portuguesa de Futebol já vem de longe!...