A doença
Pinto da Costa, presidente do FC Porto (Foto: Vítor Garcez/ASF)

A doença

OPINIÃO24.11.202309:46

Pode alguém achar-se verdadeiramente surpreendido com o estado do dragão?

Trouxe o presidente do FC Porto a público uma nova luz sobre os lamentáveis acontecimentos da mal organizada assembleia geral do clube do último dia 13. Pelo presidente do FC Porto, ficámos agora a saber que as ocorrências foram, afinal, bem menos graves do que se supunha. «Parece que andou tudo aos tiros, mas ninguém foi parar ao hospital», disse, para tranquilizar as almas mais sobressaltadas, o líder portista, pelos vistos mais indignado com a revelação pública dos tristes acontecimentos, através de gravações vídeo e áudio, do que propriamente pelas agressões, verbais e físicas, entre sócios do clube.

Condena o presidente portista o que sucedeu, mas o pior, segundo as palavras do líder, foi mesmo «os inimigos» terem ficado a saber tudo. Ficamos todos esclarecidos.

Já o líder da claque acusada por André Villas-Boas de ser a «guarda pretoriana» do presidente, atribui a movimentos gerados nas redes sociais a responsabilidade pelo sucedido. «O que potenciou tudo foram as redes sociais. Hoje vivemos nesta era, o insulto é muito fácil através destes meios e percebi que houve uma certa caça às bruxas. Pessoas que insultavam outras nas redes sociais… Foi inevitável», disse o líder dos Super Dragões, em declarações citadas pelo jornal Público.

Quem o ouvir, julgará certamente um absurdo que o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol acabe de instaurar um processo disciplinar precisamente ao líder da claque portista, após queixa apresentada pela associação dos árbitros na sequência de vídeos partilhados nas tais «malditas redes sociais» em que o conhecido adepto do FC Porto, a propósito do recente jogo do Benfica em Chaves, alegadamente se refere ao árbitro Hélder Malheiro em termos inapropriados.

Tem o líder dos Super Dragões toda a razão: é muito fácil, na verdade, insultar através das redes sociais, e insinuar, ameaçar, intimidar, pressionar ou acusar. O mal não está, naturalmente, nas redes sociais. Nem na era das redes sociais. O mal é outro. E os responsáveis não têm, evidentemente, apenas uma cor.

Não precisa, entretanto, o presidente do FC Porto de redes sociais para ser incoerente. Basta-lhe um ou outro tempo de antena nas televisões para falar de «inimigos» em vez de «adversários» e confirmar como é incapaz de contribuir para a pacificação do futebol em Portugal, como se exige ao mais antigo dirigente desportivo nacional no ativo, ou não resistir à velha e bolorenta tentação de atirar farpas à casa dos outros mesmo quando, angelicalmente, se afirma pelo princípio, que diz manter há já algum tempo, de não falar dos rivais.

«Tenho de me preocupar é com o FC Porto e em encher o museu de troféus, não é de extratos bancários. As pessoas não vão ao museu ver como está o saldo (…) Outros venderam jogadores, ganharam dinheiro, e quantos pontos têm na Champions? Zero!», disse o presidente dos azuis e brancos.

Confirma-se, pois, em toda a linha, a saudável intenção do presidente portista de não falar dos rivais e percebe-se melhor agora o que quis verdadeiramente provar quando se mostrou «muito contente por ver que o presidente de um rival [Frederico Varandas] está muito interessado na minha saída (…) por ver que o presidente de um clube como o Sporting aproveita oportunidades para ser contra mim e ver se me tira daqui».

De entre os líderes dos três maiores clubes nacionais, deve reconhecer-se, por ser justo, que apenas o presidente do Benfica tem conseguido manter a elegância, pelo menos até ao momento, de não apontar qualquer farpa aos rivais nas suas declarações públicas, como impõe, aliás, a desejável e responsável relação institucional.

O presidente do Sporting, que tem vindo, aliás, a gerir o clube com cabeça, tronco e membros, num inegável trabalho muito positivo de recuperação económico-financeira, sem deixar de definir sólidos objetivos desportivos, nem sempre resiste igualmente à tentação de atirar umas pedrinhas que sejam ao telhado do vizinho, e sempre que o resultado lhe é desfavorável, como foi no dérbi, na Luz, aproveita para sacudir alguma água do capote.

Tem, evidentemente, Frederico Varandas o direito de considerar que a equipa do Sporting não merecia ter perdido o jogo com o Benfica. Tem Frederico Varandas o direito de considerar que a equipa do Sporting foi a melhor em campo. Pode, e deve, Varandas defender treinador e jogadores leoninos, protegê-los e dar-lhes confiança.

O que não lhe fica nada bem, e creio que o presidente dos leões facilmente o reconhecerá, é comentar publicamente, como comentou na recente grande festa leonina da Batalha, o que disse, não o presidente, mas o treinador do mais histórico dos rivais de Alvalade, o alemão Roger Schmidt, logo após o sucesso dos encarnados sobre os leões, no dérbi da última jornada da Liga.

Pelo andar da carruagem, não deixará, entretanto, o presidente do FC Porto de continuar, porventura com cada vez mais intensidade, de apelar nos tempos mais próximos ao contra tudo e contra todos como forma (habitual há décadas) de desviar atenções e, no caso presente, de iludir cenários perante a primeira verdadeira crise interna que inegavelmente enfrenta em mais de 40 anos de presidência do clube.

Não é só uma grave crise financeira (e veremos até final do ano como vai a administração portista operar o milagre de transformar capitais próprios negativos de mais de centena e meia de milhões de euros em capitais próprios… positivos, como prometeu e assegurou o presidente portista); é também já uma grave crise de identidade no clube, de uma certa forma de estar no desporto, no futebol e, agora, até na instável, e tantas vezes ainda opaca, indústria do futebol, nos negócios do futebol e nas relações do futebol; é, também, parece-me cada vez mais claro, uma crise de liderança, no sentido em que parece cada vez mais contestada a forma como é administrada a SAD dos dragões e as internas ligações e relações de poder entre os diversos, e mais proeminentes, atores da vida do grande clube azul e branco.

Nunca como hoje o grande líder portista parece ver o tapete fugir-lhe tanto debaixo dos pés, ao ponto de o levar a cometer lapsos como o de considerar - dando até um ar de desespero de causa - que sem a claque Super Dragões, fora de casa, a equipa do FC Porto passaria a vida a jogar sozinha. Uma triste e surpreendente afirmação.

Pior do que tudo isso só a inaceitável intimidação de que foi vítima, esta semana, o cada vez mais ex-treinador de futebol e cada vez mais candidato à presidência do FC Porto, André Villas-Boas. Não há, realmente, como disfarçar o lamentável estado a que as coisas parecem estar a chegar no universo portista, mas nada, ainda assim, que surpreenda muito quem se lembra do que no passado viveram, nas hostes portistas, alguns jogadores (há testemunhos públicos) ou treinadores (lembram-se do que sucedeu com Co Adriaanse, em 2006?), e nunca é demais recordar o caso da inqualificável e violenta agressão ao automóvel e família do atual treinador do FC Porto, numa noite de setembro do ano passado, após a derrota num jogo da Liga dos Campeões.

Que a justiça é lenta já todos sabemos, e portanto vamos ter de esperar para ver devidamente punido quem naquela noite da partida com o Brugges atacou o automóvel onde seguiam a mulher do treinador portista e dois dos filhos. Mas será que o FC Porto já procedeu contra os identificados adeptos autores daquela assustadora agressão?!...

O que sucedeu agora junto à casa de André Villas-Boas, e com um dos seus colaboradores, reflete, no fundo, o pior que há no futebol e nas claques do futebol, mas no universo portista ninguém pode achar-se verdadeiramente surpreendido porque não faltam exemplos de ódio, intimidação e violência numa cultura há muito promovida e protegida por gente altamente responsável, que sempre deu a ideia de não mexer uma palha para impedir a deterioração do ambiente no futebol português e muito menos para o defender de indesejável poluição.

Péssimos atributos e nocivos comportamentos há-os em todas as claques, mais ou menos organizadas ou mais ou menos protegidas, sobretudo no mais mediático, emotivo e impactante mundo do futebol. A maior diferença está no modo como se lida com o problema.

No Sporting, Frederico Varandas teve a coragem de o enfrentar de frente. No Benfica, o problema tende a agravar-se se os responsáveis do clube continuarem a assobiar para o lado, e muito suave, creio, voltou a ser o castigo aplicado pela UEFA à reincidente, provocadora, inaceitável e perigosa ação de alguns adeptos encarnados.

No FC Porto, o problema não existe enquanto a principal claque parecer uma extensão da cultura de um regime para o qual um título é rigorosamente mais importante do que qualquer outra coisa.

Seja lá o que for!