A comunicação de Amorim
Ruben Amorim (Foto Sporting)

A comunicação de Amorim

OPINIÃO06.05.202306:30

Excelente exemplo de como um treinador profissional de futebol deve expressar-se

RÚBEN AMORIM, treinador profissional de futebol do Sporting Clube de Portugal tem surpreendido através da forma como comunica. Ao contrário de muitos outros, foi imediatamente visível que para Ruben Amorim o modo como falava e se nos dirigia, não se centrava simplesmente na utilização de uma técnica em que se limitava a juntar as habituais palavras utilizadas no que alguns já identificam como o futebolês

A sua linguagem era acima de tudo um modo de expressão humana com um determinado sentido e significado. Ao expressar-se através da sua linguagem verbal e corporal, fazia-o tanto melhor quanto capaz de suscitar em todos nós a necessidade de nos interrogarmos acerca daquilo que ainda não tínhamos pensado, indo assim muito além da simples utilização das palavras entretanto proferidas. Razões mais do que suficientes para justificar que tentemos contribuir para a compreensão das respetivas razões que fundamentam essa capacidade expressiva.

O treinador, enquanto ser humano, é um ser sensível, envolvido, ativo, aberto aos outros e ao mundo exterior, estabelecendo com aqueles que o rodeiam uma relação continuada. Perceciona o mundo em que vive através de um contacto constante, direto e experiencial, uma consciência percetiva que lhe permite redescobrir tudo o que o envolve. Coexiste com as coisas e com aqueles com quem se relaciona através de uma forma de conivência pré-reflexiva e prática. 

O que significa que ao comunicar não utiliza um processo meramente mecânico regido por leis fisiológicas ou psíquicas: está sim e principalmente a evidenciar a sua abertura ao meio ambiente e aos outros com quem se relaciona, através de uma linguagem e capacidade expressiva que não é só falada, mas é também vivida como um ato expressivo do corpo. 

Citando o livro A arte de um líder comunicar em público, de Terry Pearce, da Haas School of Business da Universidade da Califórnia nos Estados Unidos:

«São líderes aqueles que possuem carisma quanto baste para desafiarem constantemente os seus colaboradores a caminho da excelência. Também os que possuem uma visão mobilizadora e são capazes de comunicar com aqueles que consigo trabalham de um modo extremamente mobilizador». 

O que corresponde perfeitamente ao impacto que a comunicação de Ruben Amorim tem alcançado em todos nós.

ESTÁ hoje perfeitamente identificado que a nossa linguagem e respetiva capacidade expressiva, não é só o todo e a unidade das letras, palavras e frases utilizadas, mas também (e principalmente!) o sentido e o significado que, neste caso o treinador lhes pretende atribuir; enquanto fala, as palavras e as frases que utiliza misturam-se com momentos de silêncio e hesitação até que, por fim, decide o que dizer. E a sua linguagem alimenta-se desses silêncios intermédios, num verdadeiro não dito, um fundo de silêncio que enriquece a respetiva capacidade expressiva; como se ao intermediar as suas palavras fosse tão (ou mais!) importante que as próprias palavras entretanto proferidas. O significado das palavras que o treinador profere só aparece quando situado num determinado contexto e representa uma forma própria de cada um ser quem é.

NO fundo, é como se o treinador se entregasse completamente a um determinado tipo de comunicação e só verdadeiramente tivesse importância o significado das palavras e não propriamente as palavras utilizadas. Também ao ser capaz de ouvir para além das palavras que lhe dirigem, o treinador tem acesso ao sentido e ao significado daquilo que verdadeiramente lhe pretendem transmitir, estabelecendo uma profunda aproximação e sintonia. 

Um verdadeiro jogo de sentido onde as palavras entretanto proferidas alteram as suas emoções oferecendo sentidos alternativos; além de também por vezes alterarem a sua visão das coisas e do mundo que o rodeia. 

Ao abrirmo-nos a tudo o que nos envolve e com quem nos relacionamos através da nossa perceção, a linguagem contribui para essa relação vivencial, transformando e prolongando as respetivas relações de sentido. Urge assim que a generalidade dos treinadores utilize uma capacidade expressiva centrada no seu corpo vivido e nos seus movimentos, através de gestos, expressões faciais e tons de voz, que não só esclareçam o sentido das palavras utilizadas como permitam compreender a intencionalidade e o significado da sua comunicação intersubjetiva com aqueles com quem se relacionam. 

Um alerta óbvio para todos os treinadores no sentido de também cuidarem da sua preparação em termos comunicacionais, treinando a capacidade expressiva do seu corpo e habilitando-se com uma determinada intencionalidade comunicacional através de palavras enriquecidas por movimentos, gestos, tons de voz, etc...

Um corpo carregado de intencionalidade e poder de significação, que ao utilizar as palavras o faz quase sempre segundo uma atitude determinada e usando as palavras como instrumento de ação e capacidade expressiva. O que significa que as palavras que os treinadores proferem ou ouvem, representam um verdadeiro mundo de significados, que lhes permitem interpretar ou fazer perceber o que lhe pretendem comunicar.

ATRAVÉS do seu corpo e motricidade e respetiva perceção o treinador adquire o sentido estrutural das suas vivências no mundo e ao comunicar com os outros, perceciona os gestos e ações respetivas expressas corporalmente por aqueles com quem comunica. Numa perceção mútua que é, afinal, pura experiência vivida.

Como disse o filósofo Merleau-Ponty, as palavras que proferimos exigem que as entendamos como se estivéssemos a «cantar o mundo» através de um profundo significado gestual e existencial, verdadeiro ato de transcendência imbuído de motricidade e inteligência e claramente expressivo de uma comunicação intersubjetiva.

O exemplo de Ruben Amorim e a necessidade aqui sentida de o apontar como uma boa prática comunicacional, assenta em que consegue «fazer-nos ver e sentir através das suas palavras». Ao comunicar connosco, revela-nos o que está a pensar e a sentir através do seu tom de voz, dos seus gestos, do seu rosto... O seu corpo apresenta-se como um verdadeiro meio de comunicação, cujo conjunto de significações viventes nos permite compreender o que nos pretende comunicar. 

Em termos gerais, para que cada um de nós perceba o que nos pretendem comunicar, precisamos naturalmente conhecer o vocabulário e a sintaxe utilizados, interpretando as palavras que nos dirigem como o fazemos através dos gestos e da mímica daqueles que comunicam connosco. 

O conhecimento prévio do outro clarifica o conhecimento daquilo que nos pretende comunicar, compreendendo gestos, postura corporal ou mímica facial e visual. Como se a intenção e o significado do que nos pretendem comunicar habitasse em nós e nos permitisse compreender os outros através do nosso corpo e da consonância corporal que estabelecemos com eles. 

Comunicamos numa reciprocidade de gestos e intenções, como se estas habitassem os nossos corpos através de uma consonância de experiências percetivas. Onde o sentido emocional do que dizemos e a influência cultural do meio em que vivemos tem uma importância decisiva no impacto que temos naqueles com quem comunicamos.

Ao comunicarmos através da linguagem, o nosso corpo apresenta-se como um verdadeiro meio de comunicação, cujo conjunto de significações viventes nos permite compreender os outros e perceber as coisas. 

Conclusão, a comunicação de Ruben Amorim é um excelente exemplo de como um treinador profissional de futebol deve expressar-se.

Como aliás fica bem expresso nestas suas palavras (cito A BOLA de  22/04/23):

«Não há explicação (para os atuais maus resultados), como não houve quando vencemos um campeonato». 

Ao resumir nesta sua afirmação a complexidade do comportamento humano, Ruben Amorim demonstra desde já um excelente potencial futuro.  Aliás bem confirmado quando recentemente afirmou: «Já passei por momentos difíceis e a vida ensina-nos que as coisas mudam muito rápido. Acima de tudo, aprendo muito não só comigo, mas com os outros.»

TAL como escreveu o britânico Malcolm Gladwell no seu livro A Chave do Sucesso, «porque existem mensagens que se propagam com facilidade e outras não? Algumas mensagens emergem por vezes à nossa volta de maneira avassaladora, como autênticas epidemias. Outras, nem por isso! Porquê? O que podemos fazer para conseguir que as mensagens que pretendemos transmitir se propaguem?». 

«Obviamente, melhorando o nosso impacto comunicacional. É preciso que aquilo que queremos transmitir prenda a atenção daqueles a quem nos dirigimos, contenha algo que conquiste a sua aderência. E o que conquista a aderência daqueles a quem nos dirigimos é, por vezes, algo muito pequeno, aparentemente trivial. Algo prático, personalizado, capaz de ficar na memória.»