40 anos disto e daquilo

OPINIÃO31.05.202207:00

Os leitores que, aqui chegados, esperavam encontrar o desenlace de um manifesto antiportista, talvez fiquem desiludidos

Q UEM lê estes textos costuma encontrar qualquer coisa sobre o Benfica e nada mais. Há umas semanas dediquei um texto a um jogador de outra equipa, e lembro-me bem porque foi o único texto - em 39 - dedicado na íntegra a um tema não diretamente relacionado com o meu clube. Não acontece por acaso. Num país tolhido pelo clubismo enquanto espécie de ideologia, olhar para dentro e falar apenas do Benfica - cujos problemas resultam em matéria de sobra - sempre me pareceu uma forma mais saudável de andar aqui.
Mas, dizia, lembro-me que foi o único texto não diretamente ligado ao Benfica porque foi também o único caso em que recebi mensagens com insultos logo na manhã de 3.ª-feira, antes mesmo de deixar os meus filhos na escola. Não foi exatamente uma surpresa. A minha primeira ideia para o texto desta semana envolvia o Futebol Clube do Porto e menções diretas de alguns dos seus dirigentes e funcionários. A ideia pareceu-me boa durante alguns segundos, até me lembrar dos tempos da televisão, em que semanalmente recebia ameaças de morte, de visita à minha casa ou ao meu local de trabalho. Lembrei-me dos insultos a diferentes membros da minha família, e recordei sem saudade as promessas de ganhar um novo andar no dia em que alguém me visse na cidade do Porto.
Estas ameaças não foram feitas por um ou dois sujeitos. Foram centenas de pessoas. Algumas eram anónimas, mas muitas estavam perfeitamente identificadas com o nome e a fotografia. Lembro-me que às vezes dava por mim a consultar os perfis das pessoas nas redes sociais e percebia que eram tipos aparentemente normais, com famílias como a minha, estudos quanto baste, atividades de lazer convencionais, convicções ideológicas respeitáveis, enfim, vidas perfeitamente normais, pessoas de quem eu poderia provavelmente ser amigo, não fosse o facto de o futebol as transformar naquilo. Não, não foi o jogo jogado nem os melhores jogadores que o leitor se lembra de ter visto. Quando digo futebol refiro-me infelizmente a uma constelação de pessoas que, ao longo de décadas, se encarregaram de tornar o futebol numa das faces mais hostis de um país relativamente calmo.
Esta é a parte em que eu deveria chamar os visados pelos nomes, mas são demasiados e quase todos afetos aos três grandes. Lamento. Os leitores que, aqui chegados, esperavam encontrar o desenlace de um manifesto antiportista, talvez fiquem desiludidos se eu explicar, por uma questão de honestidade para comigo mesmo, que o Benfica também contribuiu - e muito - para esta negação do futebol em forma de terrorismo comunicacional. Tenho de começar por aí. Sei o que li no boletim informativo semanal pago com dinheiro do meu clube, e não foi bonito. Eram páginas e páginas de ataques a dirigentes, jogadores, jornalistas e a quem mais fizesse parte das novelas dessa semana. Não me choca que existam pontos de vista comuns se forem devidamente fundamentados, mas que essa lógica seja usada para colocar em causa a seriedade de qualquer outro interveniente, muitas vezes recorrendo à mentira e à calúnia, tudo porque o Benfica não ganhou, é uma forma de estar a que o Benfica nunca mais deve regressar. Envergonha-me um pouco, devo dizê-lo, ter feito parte dos recipientes desse documento. E é bastante irónico porque essa é uma forma de estar da qual já fui alvo várias vezes enquanto benfiquista, assim que as minhas opiniões na televisão deixaram de ser condizentes com as do poder instalado. Se isso não é intimidação, o que é? Percebam de onde venho quando decido falar primeiro sobre o meu clube, e percebam que esta doença está em todos os clubes. Tem que ver com lógicas de obtenção e manutenção de poder. E, em matéria de futebol português, arrisco dizer que calha a todos, se aqueles que estiverem no poder se sentirem chamuscados.
 

Frederico Varandas fez no domingo graves acusações a Pinto da Costa em mais um episódio polémico do futebol português


É por isso que, compreendendo as palavras de Frederico Varandas dedicadas a Pinto da Costa, e concordando que a longevidade de Pinto da Costa no futebol português e os seus méritos tem muitíssimo de questionável, apetece perguntar se alguma coisa verdadeiramente muda por se dizer as coisas naqueles termos, pensados para incendiar, ou se o discurso não foi mais do que uma manobra de diversão quando o nome do Sporting se vê também ligado a acusações de corrupção. Admito que o discurso produza consequências, mas não antecipo que sejam as desejadas, isto é, o saneamento do futebol português. Compreendo que Frederico Varandas possa dizer tudo isto para distinguir o seu clube dos demais, mas ao fazê-lo acaba por ser apenas mais um a autoproclamar a singularidade do seu clube depois de terminar em segundo lugar. Se é para isso, os seus rivais também têm lá quem o faça. No final acaba cada um a falar sozinho e o futebol português continuará igual ou pior. Ah, e quem ganhar o próximo campeonato fará sempre o discurso mais altivo dos três, nesse dia em nada crítico das entidades reguladoras do futebol, porque afinal está tudo bem quando se ganha. Isso ou o futebol português precisa desesperadamente de novos guionistas.
É também por isso que, apesar de compreender as palavras do comentador Luís Vilar quando refere a estratégia de intimidação do Futebol Clube do Porto, me apetece perguntar - não a ele, mas a todos os que ouviram aquelas palavras e sentiram indignação - se alguma vez souberam de pessoas que tiveram a polícia à porta de casa durante semanas porque decidiram escrever sobre o Benfica e, consequentemente, receberam ameaças de morte consideradas credíveis. Não é ficção. Aconteceu mesmo. E ainda hoje vejo alguns adeptos do meu clube dizerem que às vezes isto só lá vai com apertos, para ver se as pessoas entram nos eixos. Por vezes são as mesmas pessoas que criticam ferozmente a postura odiosa dos outros clubes ou se escandalizam quando morre um adepto numa rixa, simplesmente porque com isso pensam poder ferir o clube que odeiam. Podemos discutir se há gente pior do que cada um de nós nos outros clubes, mas resumir a rivalidade clubística em Portugal a uma espécie de disputa entre forças do bem e forças do mal acaba por se tornar patético.
Lembro-me de uma vez ter dito que algumas pessoas do Futebol Clube do Porto alimentam uma cultura de ódio nos adeptos. Mantenho o que disse e temos visto novos exemplos disso. Mas devo acrescentar que os outros clubes não têm propriamente sido exemplares ao longo destes anos. Eu sei que este texto vai parecer pouco benfiquista a muita gente, mas vivo bem com isso. Não sei como se muda tudo isto a não ser com um acontecimento cataclísmico no futebol português, que me parece ainda muito distante. Parece-me que é preciso mudar muito mais do que um dirigente. Mas apetece perguntar, aos olhos daquilo que vemos hoje: será que alguém quer mesmo um futebol diferente desta coisa doentia que temos em Portugal? Ou será que este fogo cruzado e esta selvajaria são justamente uma das dimensões que assegura a sua sustentabilidade? Da próxima vez que alguém falar em 40 anos disto, não se esqueçam que ajudámos todos à festa.

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