Espaço Universidade O Benfica e o risco da interpretação (ARTIGO DE MANUEL SÉRGIO, 365)
Como sou “alfacinha de gema” e filho de um pai (querido pai) que fazia do futebol o seu espetáculo favorito, julgo não surpreender ninguém ao adiantar que vi jogar e admirei francamente o Sporting dos “cinco violinos”, o Benfica de Eusébio, Coluna, José Augusto, Simões e o F.C.Porto de Pedroto, Pinto da Costa, Artur Jorge, José Mourinho e André Villas-Boas. Eram, de facto, equipas que mantinham acesa a curiosidade dos simpatizantes dos outros clubes, pois que nelas brilhavam “estrelas” que, na memória dos livros e das revistas e do cinema e até dos felizardos (como eu) que as aplaudiram, “in illo tempore” - resistem ainda a toda a velhice. De facto, todas elas lavraram obra de alto merecimento. Desta feita, no entanto, é do Benfica atual que vou ocupar-me. Não aceito pacificamente todas as ideias, que o mesmo é dizer: não me arrogando o direito de qualquer “magisterdixismo” (o que seria ridículo) não aplaudo pacoviamente, nem a falta de estudo, nem um cego facciosismo. Não, não desprezo as “razões do coração”. Sei bem que, sem sentimento, não há razão mas quem, como eu, teve a fortuna de conhecer, com alguma intimidade, muitos destes homens-futebolistas e até por respeito por todos eles, não pode “confinar-se” (um verbo muito em voga), na análise de um jogo de futebol, ao “amor à camisola” e aos “erros dos árbitros” e à originalidade da tática do treinador. De facto, há muito mais num jogo de futebol de alta competição. Mas eu começo sempre com o mesmo pressuposto: o mais importante, numa equipa de futebol, é o jogador de futebol! Já vi por aí escrito que se avizinham táticas revolucionárias, audazes, rebeldes, onde o jogador verá reduzido a sua influência, o seu poder, na sua equipa. Estou velho, de facto. Sou como o aquele Diógenes que, à luz plena do meio-dia, com uma lanterna acesa, dependurada dos dedos, percorria as ruas de Atenas, à procura de um homem, ou melhor: de um homem integralmente humano. Eu, dos baixios da minha pouquidade, continuo a repetir-me: sem grandes jogadores, não há grandes equipas, como sem grandes intérpretes, não há grandes orquestras. E o treinador? E o “maestro”? Qualquer honesto estudo e com recta intenção, dirá isto, mais ou menos: sem intérpretes superdotados (quantos mais, melhor) não há grandes equipas, nem grandes orquestras.
É verdade que o treinador lidera todo o processo de formação do jogador e a sua integração no grupo. Mas, sem a “vocação” inicial do jogador, não há “matéria-prima” (digamos assim) para o treinador trabalhar. No livro O Treinador na empresa, Jorge Araújo, nome grande do basquetebol português, escreve: “Quando, em 1977, fui pela primeira vez aos Estados Unidos, acompanhando uma equipa de basquetebol, levava naturalmente comigo um imenso número de questões, para colocar aos treinadores norte-americanos (…). E logo, na primeira oportunidade, disparei: Qual é para si, entre as muitas acções que tem de desenvolver como treinador, aquela a que atribui maior importância? E quando julgava que a resposta se relacionaria com algo como a preparação física e técnica e tática dos jogadores, ouvi com espanto (…): é a de recrutamento de jogadores (…). Se recrutamos bem, e isto significa fazê-lo através de jogadores que nos possibilitem alcançar os objetivos pretendidos, teremos muito maiores possibilidades de sucesso, que no caso contrário” (in Manuel Sérgio, Filosofia do Futebol, Prime Books, 2009, pp. 132/133). Se, como o Diógenes, procurássemos, no atual “plantel” do Benfica, um jogador com a “classe” do Eusébio ou do Coluna ou do José Augusto ou do António Simões, ou mesmo do atual presidente Rui Costa, dificilmente o encontraríamos. Eu sei que as razões são muitas, principalmente, as de ordem económico-financeira. Mas, quaisquer que sejam as causas, os efeitos convergem nesta realidade insofismável: a frase é antiga e conhecida -“A Verdade é o Todo”. Portanto, a quem deverão entregar-se os louros duma vitória? Ou a todos, ou a ninguém! Demais “circunstância” é adversa . E a “circunstância”, quero eu dizer: toda a galáxia do sistema capitalista e a sua competição desenfreada; o struggle for life darwinista; e o facto de a política não saber (nem, poder) controlar (ou erradicar, de uma vez por todas) o capitalismo financeiro-especulativo. E, assim, sem uma nova ordem económica internacional, até no futebol só os “ricos”, normalmente, poderão ostentar o que de melhor (incluindo, aqui, principalmente, os jogadores) o futebol tem…
Não esquecerei nunca o que ouvi dizer ao Miguel Muñoz, antigo jogador e depois treinador do Real Madrid da década de 50 do século passado: “Quando o Di Stéfano joga, cada um dos jogadores do Real Madrid vale por dois”. E a célebre equipa “blaugrana” do Guardiola, sem o elenco de personalidades, todas elas no topo da exemplaridade (relembro o Messi, o Xavi, o Iniesta e o Busquets) poderia ser o que foi? E a seleção nacional brasileira de 1970, seria a melhor seleção nacional de todos os tempos, sem a genialidade de Pelé e o talento raro do Tostão, do Jairzinho e do Rivelino? E a holandesa “laranja mecânica”, com o seu “futebol total” que o treinador Rinus Michels, um treinador exigente, concebeu e tentou concretizar, poderia dispensar o contributo inestimável do imortal Johan Cruyff e a “classe” do Neeskens e do Van Hanegem e do Rensenbrink? E o Milão de Arrigo Sacchi (um tático de indiscutível perspicácia) ficaria na história, em letras de um brilho inapagável, sem o Maldini, o Baresi, o Rijkaard, o Gullit e o Van Basten?... E de Pedroto, Mourinho, Artur Jorge e Jorge Jesus sou também tentado, porque sinceramente os estudei, a voltar sempre, como uma obsessão, à minha tese predileta: não há jogos, há pessoas que jogam! E olhem que o Mourinho já foi classificado pelos “entendidos”, como o melhor treinador do mundo. Para mim, se quiser, ainda o é. É das pessoas intelectualmente mais dotadas que já conheci. Eu sei que a inteligência é um conceito polimorfo mas parece indiscutível que as dimensões cognitivas são de importância primeira, nas diferenças individuais de um desempenho, incluindo aqui um desempenho desportivo. E muito teria também a escrever sobre dois treinadores de futebol, verdadeiramente singulares, Mestre Pedroto e o Dr. Artur Jorge. Mas, hoje, é do Benfica que, em resumida síntese, procuro ocupar-me.
“Reduzida a dez, mais de uma hora, a Águia foi heróica e voou para a fase de grupos”. Assim titulou A Bola o facto, que não é muito comum, de Portugal voltar a ter três equipas, na fase de grupos da Liga dos Campeões e da passagem do Benfica, depois de três vitórias e um empate, na terceira eliminatória e “play-off”, a esta mesma fase de grupos. Julgo conhecer o “mister” Jorge Jesus. Como pessoa (e é da pessoa que nasce o “mister”) anteponho a ternura e a bondade, como duas qualidades que, nele, são “naturais”. Volto às “razões do coração” de Pascal. É verdade que o coração morre mas não envelhece mas, no Jorge Jesus, elas esplendem como não é habitual. E é destes homens, quando são líderes, que é possível esperar “milagres”. No jogo PSV-Benfica, do passado dia 25 deste mês de Agosto, as sapientes sentenças dos críticos distinguiram o Vlachodimus, o Otamendi, o Grimaldo. Para o Jorge Jesus, no entanto, o “melhor em campo” foi o Benfica! Queria salientar ele, se bem o entendi que, desde o presidente Rui Costa, passando pelo Jorge Jesus, pelos jogadores, pelo Rui Pedro Braz, pelo Luisão, pelos departamentos técnico e clínico e chegando mesmo ao mais humilde funcionário e ainda aos milhares e milhares de sócios e simpatizantes – todo o Benfica, na Holanda, entrou em campo, todo o Benfica está na fase de grupos da Liga dos Campeões! O Miguel Torga disse, um dia: “A poder e a valer, nem sempre temos consciência do que podemos e do que valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minimizamos maceradamente as nossas, sem nos lembrarmos sequer de que uma criatura só não presta, quando deixou de ser inquieta”. Inquietude, vontade de transcendência e de superação não faltam a Jorge Jesus. Sem dominar os argumentos da lógica? Ou seja, sendo ilógico? Peço desculpa: ele não é ilógico. Só que, quando se ama, a lógica é outra! Até as pátrias se fizeram com heróis, mártires e santos. Em todos eles, se visiona mais fé do que razão. Mas a fé e a razão não são sentimentos antagónicos. Provou-o Benfica, num jogo de futebol, na Holanda. E tem de fazer outro tanto, no novo Benfica que aí tem de nascer!
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto