Espaço Universidade Queres mais dinheiro? … Toma… (artigo de Gustavo Pires, 127)
Numa nota enviada às redações o Comité Olímpico de Portugal (COP) (Público, 2020-10-12) manifestou a opinião de que o desporto está a ser “claramente” discriminado relativamente à versão preliminar do Orçamento de Estado (OE) para 2021. E acrescentou ainda que “o poder político que encontra soluções para a cultura é exatamente o mesmo que as ignora para o Desporto”
A situação do desporto nada tem a ver com a dramática situação da cultura. Se, por um lado, há clubes de futebol a gastar milhões a contratar jogadores e a pagar lautos vencimentos, por outro lado, tanto a Federação como a Liga podem acudir às dificuldades que alguns clubes possam estar a passar. Felizmente, os clubes das mais diversas modalidades, médios e pequenos, por esse Portugal fora, não deixaram de ter, pelo menos, parte das suas receitas, porque desenvolvem atividades na base do pagamento pelos associados e os próprios atletas. Alguns, para além dos apoios das autarquias, até estão a ser apoiados pelas Federações que deixaram de ter despesas relativas às competições internacionais e nacionais como se verifica no Inquérito às Federações publicado pelo Instituto do Desporto e Juventude. Acresce que muito do enquadramento técnico e administrativo dos clubes é benévolo ou de duplo emprego, pelo que a situação, embora muito difícil, nada tem a ver com o dramatismo que se está a passar na cultura, com milhares de pessoas completamente desamparadas. Assim sendo, parece-me não ter qualquer sentido comparar a situação do desporto com a da cultura, setor ao qual prometeram 1% do PIB e estão a atribuir-lhe, tão só, a quinta parte (cerca de 0,21% apenas). Se os dirigentes desportivos querem que os políticos compreendam o desporto, enquanto realidade profunda da sociedade, têm de começar por ser capazes de compreender o desporto a partir do País e das suas circunstâncias económicas, sociais e políticas.
Por isso, não se percebe como é que se pode afirmar que o desporto está a ter “um tratamento claramente discriminatório” e muito menos que se trata de “um dos sectores mais expostos ao impacto da crise”. Repare-se que toda a superestrutura continua a ser alimentada financeiramente pelo Estado e o verdadeiro profissionalismo para além do futebol é exíguo e, em alguns casos, pejado de atletas estrangeiros. E também não se podem compreender as lágrimas de crocodilo que as mais diversas entidades choram devido a umas escassas centenas de milhares de praticantes estarem privados da atividade desportiva formal. Desde logo porque, ao longo das últimas pelo menos duas dezenas de anos, nunca ouvimos essas mesmas entidades manifestar o mínimo lamento por Portugal estar, miseravelmente, na cauda da União Europeia em termos de prática desportiva enquanto descarta (deixa abandonar) dessa prática cerca de 90% dos jovens quando atingem os 18 anos de idade para, de seguida, contratar atletas estrangeiros, a fim de fazerem parte das seleções nacionais e das delegações nacionais que inclusivamente participam nas edições dos Jogos Olímpicos!
Também não se compreendem as histriónicas lamentações da cúpula do desporto nacional que, à custa da pandemia, reforçaram o discurso do “queremos mais dinheiro” esquecendo-se que, desde que o país aderiu ao Euro, a casa da Moeda deixou de imprimir papel-moeda, pelo que para terem mais dinheiro ele terá de ser subtraído de outras quaisquer entidades, eventualmente com verdadeiras restrições, carências manifestas e necessidades não satisfeitas.
Infelizmente alguma comunicação social alinha em reportagens que, por ausência de sentido crítico e de contraditório, acabam por fazer passar uma narrativa que não expressa verdadeiramente o que na realidade acontece. E a ideia que sobressai é a de que Portugal em matéria de apoio do Estado ao desporto “está longe dos milhões da Europa”. E, regra geral, são apresentados alguns exemplos que, se em termos absolutos nada significam, quando verificados em termos relativos a conclusão é precisamente a contrária daquela que querem fazer passar. Pelo que, se olharmos com olhos de ver, chegamos facilmente à conclusão de que o problema do desporto nacional não é falta de dinheiro, antes pelo contrário, o problema do desporto nacional é dinheiro a mais e, sobretudo, dinheiro fácil, gerido sem organização, planeamento, objetivos claros e à margem de controlos externos, sistemáticos, competentes e credíveis. Um dinheiro despendido num sistema balcanizado, burocratizado, gerador de desperdícios, duplicação de funções, conflitos de competências, ausência de estratégia de desenvolvimento, desorientação, gestão política por impulsos, com o Alto Rendimento proletarizado e a mais completa ausência de um rumo claro a partir da base da Pirâmide de Desenvolvimento. Um sistema que acaba por ficar nas mãos de dezenas de organizações a funcionarem em roda livre, à margem de qualquer orientação política e, na máxima anarquia, sustentadas à custa do dinheiro dos contribuintes.
Por isso, quando a comunicação social, no quadro da estratégia do “queremos mais dinheiro”, é levada a proclamar que “Portugal está longe dos milhões da Europa”, é necessário considerar que uma coisa é o habitual folclore do discurso miserabilista de um faustoso desporto que prima nas ridículas galas em demonstrar quanto está afastado do país real e outra, completamente diferente, é a determinada pelos factos.
Comparemos, em termos relativos, os dados referentes a Portugal e a Espanha.
No âmbito do OE, uma comunicação social completamente escandalizada noticiou que o desporto nacional vai receber para o ano de 2021 a quantia de 65,4 M€ e Espanha vai receber 260,5 M€. Quer dizer que, se em termos absolutos o desporto português recebe do OE um quarto da verba do desporto espanhol, todavia, em termos relativos, uma vez que Espanha tem um território mais de cinco vezes maior e uma população mais de quatro vezes maior, o desporto português acaba por receber mais do Estado do que o desporto espanhol. E ainda acresce que à verba de 65,4 M€ do OE faltam contabilizar, pelo menos, mais cerca de 30 milhões de euros referentes aos Jogos Online e ao Placard, verbas que transitam diretamente da Santa Casa para as respetivas Federações. Nestes termos, o orçamento do desporto português por parte do Estado para 2021 rondará os 100 milhões de euros, o que significa bem mais de um terço do valor do orçamento espanhol, país que tem mais de quatro vezes a população portuguesa e um território cinco vezes maior do que Portugal. Assim sendo, o que se sugere é que a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, de imediato, a fim de contrariar os discursos demagógicos, no quadro de um Livro Branco do Desporto Nacional, publique um documento onde sejam divulgadas todas as verbas afetas pelo Estado ao desporto nos últimos dez anos, bem como aquelas obtidas através de organizações privadas nacionais ou internacionais como é o caso da Solidariedade Olímpica.
Mas se regressarmos ao ano em que se realizaram os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro (2016), a fim de cruzarmos a informação financeira com os resultados desportivos, a situação ainda se torna mais expressiva. Em 2016, o orçamento do desporto espanhol foi de 175,5 M€ e o de Portugal cerca de 72 M€ correspondentes a 42 M€ do OE, acrescidos de 30 M€ respeitantes ao Desporto Escolar, aos Jogos Online e ao Placard. Quer dizer, o desporto português em 2016 teve quase metade da verba do desporto espanhol. Todavia, se olharmos para os resultados desportivos, podemos apurar que nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro (2016) enquanto a Missão Espanhola foi composta por 306 atletas (163H; 143M) que competiram em 25 desportos e obtiveram 17 medalhas (7,4,6), a Missão portuguesa foi composta por 92 atletas (62H; 32M) que competiram em 16 desportos e conquistaram uma única medalha (0,0,1). Comparando os resultados conseguidos com o número de atletas da Missão Espanhola com os da Missão portuguesa temos de dizer que, nem nunca Coubertin disse que o “importante é participar” com o sentido que alguns lhe querem dar, nem os Jogos Olímpicos podem servir para fazer turismo à custa do bolso dos contribuintes.
Mas se, em função das condições proporcionadas, os resultados relativamente aos JO foram deveras medíocres com a agravante de terem sido despendidas avultadas verbas que deviam estar ao serviço da promoção do desporto, no que diz respeito à prática de base a situação desportiva portuguesa relativamente à espanhola é pior do que medíocre. Segundo o Eurobarómetro (2017), enquanto 14% da população espanhola pratica regularmente desporto e 40% diz nunca praticar, em Portugal só 5% da população diz praticar regularmente desporto e 68% diz nunca praticar.
O problema do desporto português não é falta de dinheiro. Sou mesmo de opinião de que, no estado atual da Situação Desportiva portuguesa, atribuir mais dinheiro ao desporto é agravar ainda mais a situação, uma vez que não é atirando dinheiro para cima dos problemas que eles se resolvem, como tem sido apanágio em muitas outras áreas em Portugal. Quando tal acontece fica-se sem o dinheiro e com mais e maiores problemas. É o que tem vindo a acontecer desde o golpe palaciano perpetrado em 2005. E quem quiser olhar para o futuro basta-lhe olhar para o futebol. Temos uma Federação rica e um futebol pobre do ponto de vista ético-cultural, que vive à custa de três ou quatro clubes, cujos exemplos que passam para a sociedade são pouco ou nada edificantes. Salva-se uma seleção de estrangeirados que, através das competições internacionais, contribui magnanimamente para o orçamento da Federação e, felizmente, ainda alimenta o umbigo nacional.
O desporto português necessita da assunção de um pensamento estratégico de regime. Para o efeito, é indispensável preparar um Processo de Tomada de Decisão sucinto tendo em atenção: (1º) Levantar a Situação Desportiva Real (aquela que existe); (2º) Analisar a Situação Desportiva Real em confronto com os países da EU; (3º) Determinar a Situação Desportiva Ideal (aquela que devia existir; (4º) Apurar o Nível Desportivo do País; (5º) Prospetivar o Nível Desportivo que se deseja obter a três Ciclos Olímpicos considerando valores nos marcos intermédios; (6º) Equacionar as grandes linhas estratégicas que, amplamente participadas, tendo em atenção o território nacional, hão de conduzir à melhoria do Nível Desportivo do País; (7º) Desagregar por Fatores de Desenvolvimento, por programas e projetos as grandes linhas estratégicas do desporto nacional; (8º) Determinar um sistema de controlo externo em tempo real; (9º) Orçamentar; (10º) Preparar o processo de decisão política de regime.
Trata-se de um Processo de Tomada de Decisão a ser elaborado de uma forma clara, precisa e concisa, sem narrativas inúteis e complicações desnecessárias pelo que deve ser formalizado em três, no máximo quatro páginas A4, de modo a ser compreendido, assumido e partilhado pela generalidade dos agentes. Depois, os programas e os projetos desenvolvem e especificam o que tiver de ser.
É de fundamental importância ultrapassar perspetivas de desenvolvimento suportadas em discursos vazios do tipo “o desporto é um desígnio nacional” porque, para além de só conduzirem a lado nenhum, fazem lembrar a qualquer ex-combatente como eu e tantos outros os velhos tempos da ação psicológica promovida pela PIDE/DGS nas Províncias Ultramarinas do regime colonial.
Por tudo isto, quando se ouvem os discursos de alguns dirigentes desportivos, há dezenas de anos agarrados ao poder ou a saltarem de poder em poder, completamente descontextualizados do País e da própria Situação Desportiva, a reivindicar direta ou indiretamente mais dinheiro, apetece-me parafrasear a velha frase de Bordalo Pinheiro e dizer: Queres mais dinheiro? … Toma…
Gustavo Pires é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana