Espaço Universidade Viagens do corpo (II) (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 26)
Terminámos o artigo anterior afirmando que enquanto ao longo da filogénese humana o corpo hominídeo se foi modificando como resultado de uma evolução condicionada pela natureza, actualmente as modificações do e no corpo humano resultam de uma resposta ao ambiente criado pela sua própria espécie.
O número global de pessoas que sofriam de obesidade em 1995 cifrava-se em 20 milhões. Cinco anos depois esse número passou para 30 milhões. De imediato o nosso raciocínio é conduzido para a ingestão excessiva dos hidratos de carbono e para os hábitos de vida não saudáveis. Mas será só isso?
Regressemos um pouco atrás! O corpo dos caçadores-recolectores operava essencialmente em função da marcha. As suas posições de descanso eram a agachada ou a deitada. A partir do momento em o homem se sedentarizou, a posição agachada foi sendo progressivamente substituída pela posição sentada: numa pedra, num tronco de árvore, num banco, numa cadeira, num sofá… A partir desse momento e com a dedicação à agricultura toda a alimentação do homem se modificou (o que provocou também modificações a nível de mandíbula e dentição) reflectindo-se nas funções do próprio corpo e na anatomia do mesmo. Vários estudos demonstraram que foi decrescendo a densidade óssea dos humanos: do caçador mesolítico passando pelo agricultor neolítico até chegar ao trabalhador moderno. Os ossos foram ficando mais esguios e porosos…
O sedentarismo originou o enfraquecimento progressivo dos flexores do quadril, dos músculos isquiotibiais, dos glúteos e dos abdominais que provocaram a actual inclinação pélvica anterior com as consequentes lordoses a originarem cifoses correctivas. O desalinhamento da coluna reflectiu-se nos discos inter-vertebrais e respectivas hérnias discais. Nos nossos dias mais de 80% da população mundial sofre de dores lombares e/ou dorsais.
Na civilização grega o trabalho sedentário deu origem ao exercício físico como forma de compensação para umas classes, enquanto para outras o aumento do tempo de lazer deu origem aos jogos, ao espectáculo e ao divertimento. Daí o desporto seguiu o seu curso, até aos dias de hoje, onde o movimento e a competição (a todos os níveis, designando vencedores e vencidos) estão presentes, sendo uma actividade codificada (com regras e regulamentos) e estando integrado num sistema institucionalizado (organizado em torno de clubes e federações). Já ninguém ignora que hoje em dia o desporto é uma indústria que movimenta milhões de euros e mesmo aqueles que se pautavam por um desporto com fins formativos e educativos mudaram o seu discurso reconhecendo que o desporto (ou seja o que for a que se chame desporto) está onde estiver o dinheiro. Poucas são as excepções.
O corpo humano, feito para a marcha, começou então a ser trabalhado no desporto ao mesmo tempo que a grande maioria das profissões se exercia sentada numa cadeira. O tempo de ócio, ocupado desportivamente, ao ar livre, em ginásios ou clubes, passou posteriormente a ser ocupado em casa (‘vídeo-games’ e ’streaming’) sendo necessária uma cadeira ou um sofá.
Surgem os “e-sports” onde os competidores – sentados em cadeiras que por mais ergonómicas que sejam, sofrem de maleitas físicas e posturais (para além da pouca mobilidade, de experiências de esgotamento emocional, isolamento social e compulsividade) – se colocam em frente a um monitor durante 6 a 10 horas por dia. Enchem-se pavilhões desportivos durante horas e horas com espectadores sentados a verem, lá em baixo, minusculamente, os intervenientes diretos a competirem, quedando-se a olhar para gigantescos ecrãs electrónicos para acompanharem em tempo real a acção dos mesmos.
Tenta-se novas reformulações do conceito de desporto com o Comité Olímpico Internacional a admitir, em 2017, considerar os “e-sports” uma actividade desportiva. Ano em que se forma em Portugal uma “Federação Portuguesa do Desporto Eletrónico” com mais de vinte clubes, onde, curiosamente, só cinco possuem nome português e em que, na Cidade do Futebol se organiza o “Allianz Challenge”, no qual participaram milhares de jogadores…
Que influência poderão ter estas actividades nas posturas corporais e nas modificações do corpo humano? Que alterações biomecânicas sofrerá o mesmo? Que impactos na saúde? Talvez não sejam precisos milhares de anos para chegarmos a conclusões…
Bibliografia:
Cregan-Reid, Vybarr (2019). “Alteração primata ”. Lisboa: Clube do Autor.
Constantino, J. M. e Machado, M. (eds.) (2020). “e-Sports: o desporto em mudança?”. Lisboa: Visão e Contextos.
Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 5º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.