Espaço Universidade Os melhores treinadores… (artigo de Manuel Sérgio, 334)
O meu amigo, o jornalista brasileiro Maurício Noriega, ao evocar “os 11 maiores técnicos do futebol brasileiro”, em livro, com este mesmo nome, editado pela Contexto (São Paulo), em 2009, distinguiu o Oswaldo Brandão (“o velho mestre que era o paizão dos jogadores”); o Bella Guttman (“a silenciosa revolução húngara”) o Vicente Feola (“o primeiro executivo do futebol brasileiro”), o Lula, ou Luís Alonso Perez (“o injustiçado comandante do maior time do mundo”), o Zagallo (“o senhor copa do mundo”) o Rubens Minelli (“força aliada à técnica brasileira”) o Énio Andrade (“o cavalheiro que mudou o mapa do futebol brasileiro”) o Telê Santana (“símbolo do futebol bem jogado”) o Luxemburgo (“polémicas não tiram brilho do estrategista”) o Felipão (um técnico tamanho família) e Muricy Ramalho (“um título por temporada”). Segundo um outro amigo meu que não posso nomear, porque trabalha no futebol brasileiro, esta lista merece crédito mas, transcorridos onze anos, só poderia considerar-se completa com o Tite, o Fernando Martins (atual treinador do São Paulo) e o Jorge Jesus. E o livro passaria a chamar-se, hoje, “os 14 maiores técnicos do futebol brasileiro”. Trata-se de um livro que não vergasta alguns “varões assinalados” do futebol e, com grande elegância de ideias e de estilo, centra-se no treinador e nas suas qualidades técnicas e humanas. A propósito do nosso Jorge Jesus, fui feliz na antevisão do seu trabalho, na liderança do futebol do Flamengo: “Não sei quantas provas ganhará, mas será finalista de todas elas”. Sem o mais leve intuito de desconsiderar ninguém, não vejo treinador em Portugal que melhor se adapte ao futebol da pátria de Pelé e Garrincha e Neymar. Tecnicamente, se não laboro em erro crasso, o futebolista brasileiro é o melhor do mundo. Recordo, com saudade, a equipa de professores da FEF/Unicamp, a Faculdade onde trabalhei durante dois anos letivos: nela avultavam três jogadores (todos doutorandos, há 33 anos) de uma qualidade técnica que, julgo, lhes dava lugar numa equipa profissional. E, porque tecnicamente perfeito (ou quase), com tendência a um certo exibicionismo, o jogador brasileiro precisa de um treinador trabalhador, arguto, rigoroso e, simultaneamente, “paizão”. Como o Jorge Jesus!
Passo a citar uma notícia do jornal A Bola (2020/3/8): “Gabigol, avançado do Flamengo, não esconde que tem enorme admiração por Jorge Jesus: “É o meu paizão, amo-o do coração” revelou numa transmissão ao vivo no Instagram. “Brincamos bastante, é um cara divertido. Conversa muito comigo, tatica e tecnicamente. Vemo-lo ali no campo, gritando, cobrando, mas é um cara muito divertido. Amo-o do coração. Queria que vocês tivessem mais contacto com ele, para descobrirem a pessoa que ele é. Ele brinca com todos mas, quando tem de dar duro… ele dá”, acrescentou Gabigol que recorda um episódio com Jorge Jesus, num jogo do Flamengo, em basquetebol. “Eu e o Filipe Luís chagámos atrasados ao intervalo. Todo empolgado e feliz, sentei-me ao lado do Jorge Jesus e pedi um pacote de pipocas. Quando ele viu… “Você não vai comer isso”. E tirou-me as pipocas. Mas ele também não comeu”. Contou entre gargalhadas”. Aqui e ali, reticente aos conceitos de alguns colegas de profissão e de certos comentadores televisivos. Mas sente-se feliz, quando lhe digo: “O bom treinador de futebol tem de ser um especialista em humanidade”. E ele responde, sem demora: “’É isso o que eu pretendo ser”. O Maurício Noriega, no livro acima referido, escreveu: “Pródigo em produzir ídolos e vilões, no imaginário da paixão popular, o futebol brasileiro também é palco de grandes injustiças. Históricas injustiças. A maior delas talvez paire sobre a memória de Luís Alonso Perez, conhecido no meio do futebol como Lula. Coube a ele comandar o maior time de futebol de todos os tempos, o Santos Futebol Clube dos anos 50 e 60. Contra o legado de Lula pesam afirmações maldosas, como “aquele time jogava sozinho” (…). “Treinar uma equipe com aqueles craques até eu” (…). Com Pelé, Pagão, Coutinho, Pepe, não precisava de técnico”. Mas como desprezar ou esquecer um treinador que, entre 1954 e 1966 comandou uma autêntica máquina de jogar futebol, colecionando 38 títulos e momentos que entraram para a história do esporte mais popular do mundo?”(p. 79)
Um misto de fascínio e despeito rodeia sempre os triunfadores, os campeões. O Lula tinha o curso de treinador de futebol, mas nunca fora, como jogador, profissional desta modalidade desportiva. Nada possuindo, nem sequer um clube que o aceitasse como treinador, começou a ganhar o seu primeiro vencimento, como motorista de táxi. Mas não deixava de acompanhar o Santos, desde os juvenis e juniores até à equipa principal. Tornou-se conhecido entre os diretores do Santos com quem, por vezes, dialogava e dava mesmo as suas opiniões de pessoa competente, para além de mostrar-se um adepto fiel do clube de Pelé. Mas a sua argúcia em dilucidar situações, num jogo de futebol, levou a diretoria “santista” ao convite tão anseado pelo Lula: treinar a “garotada” do Santos, onde brilhou como um verdadeiro líder e pessoa de encantadora cordialidade. Não havia, nele, a ânsia fácil de obter popularidade: tudo fazia com superior compustura, embora a língua portuguesa não fosse o seu ponto mais forte. Destas suas equipas de jovens, que venceram todos os torneios que disputaram, levando ao rubro os “torcedores”, distinguiram-se dois jogadores: o Pepe, um ponta-esquerda de chuto violento, bicampeão mundial com o Santos e a seleção brasileira e o Del Vechio, um “centroavante”, muito rápido e habilidoso – dois jogadores que ele fez subir à equipa principal, logo que o convite chegou, não sabendo exprimir o peso da gratidão ao vice-presidente Aristóteles Ferreira, a pessoa que mais lutou pela sua contratação. De facto, tendo em conta o que ele conseguira, com as equipas mais jovens, em 1954 assumiu, com os olhos marejados de emoção, as funções de treinador principal do Santos Futebol Clube. E foi o que se sabe: durante 12 anos, venceu 4 torneios Rio-S.Paulo, 8 campeonatos paulistas, 5 campeonatos do Brasil, 2 Taças dos Libertadores, 2 Taças Intercontinentais. Em 1968, treinou o Corinthians, o qual, em jogo que ficou célebre, ganhou ao Santos por 2-0, vitória que o Corinthians já não saboreava, há 14 anos. Após este jogo, que se disputou no Pacaembú (hoje, “hospital de campanha”, para receber os doentes infetados com o novo coronavírus) os corinthianos cantavam, de alma em festa: “com Pelé, com Edu, nós quebrámos o tabu”. E o Lula entrou, também com letras grandes, para a história do Corinthians…
Para minorar a saudade (porque o Santos era o Clube do seu coração) vivendo embora em São Paulo, gozava sempre, em Santos. as suas férias, com a família. Onde aliás encontrava a rijeza prestante da amizade de velhos torcedores santistas que o não esqueciam nunca. Era também um preito de justiça ao maior treinador da história do Santos e, segundo o judicioso comentário de gente culta, o maior treinador, de todos os tempos, do futebol brasileiro. Lula não foi indigitado, para treinador do Santos, pelo seu currículo académico mas porque sabia aduzir argumentos convincentes às dúvidas dos diretores deste Clube e foi um treinador dos mais jovens de reconhecido prestígio. Um caso similar ao que se passou com o Carlos Queirós, em Portugal, o qual, depois de festejado treinador dos juniores, “subiu” a treinador de seniores. Mas o seu nome foi bem acolhido pelos jogadores, sobre o mais, pelo seu “futebolês” (linguagem típica do jogador e treinador de futebol), pelo seu otimismo, pela sua vida álacre e estuante e pela sua inteligência. O Zito, capitão do Santos e da seleção nacional brasileira (campeã e bicampeã mundial) não escondia uma admiração incontida: “O que eu mais admirava nele era a sua alegria e a sua inteligência. Ele chegava ao balneário e todos ficávamos contentes. Quando ele entrava , era como se nascesse o sol. Depois, tudo o que nos dizia tinha lógica, convencia-nos. Como treinador, era um craque e que se fez por si”. Ocorre-me agora a Hannah Arendt que, não sabendo o que é a “natureza humana”, procura os fundamentos da “condição humana”, na linguagem e na ação. No seu “O Princípio Responsabilidade”, Hans Jonas escreveu um imperativo categórico: “Age de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana, na terra”. Para mim, magistral contribuição à prática desportiva. Porque, quanto mais humano for o desporto, melhor será o treino e a competição. E mais felizes serão as pessoas que o praticam.
PS.: Cristo ressuscitou! Aleluia! O homem (e a mulher) é um ser a caminho da eternidade, “onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem prantos, nem fadiga, porque tudo isso já passou” (Ap. 21,4). Uma eternidade melhor do que todas as utopias: a República de Platão, a Cidade do Sol de Campanella, a Cidade da Eterna Paz de Kant, o Estado Absoluto de Hegel, a Sociedade sem Classes de Marx, ou o mundo da total amorização de Teilhard de Chardin – melhor do que todas as utopias, porque o próprio Jesus ressuscitado a prometeu. Para todos os que fazem o favor de ler os meus modestos escritos, Santa e Feliz Páscoa. Não esquecendo a pandemia que nos assaltou e que, com Cristo Ressuscitado, venceremos!
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto