Ayrton Senna: 30 anos do adeus a um imortal
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Ayrton Senna: 30 anos do adeus a um imortal

FÓRMULA 101.05.202410:02

Tricampeão mundial perdeu a vida durante uma corrida de Fórmula 1, onde ninguém acreditava que acontecesse. Memórias de um dia inesquecível

Dia 1 de maio de 1994. Passavam alguns minutos das 18 horas em Portugal Continental. Na redação de um jornal desportivo em Lisboa, a impressora de notícias da agência Lusa começou a bater. Na folha, apenas uma frase: «Ayrton Senna morreu». Ninguém queria acreditar no que lia, numa impossibilidade. Não, Senna. Senna nunca morreria de um acidente na Fórmula 1. Em dez anos de carreira na categoria máxima do desporto automóvel, o piloto brasileiro criou sobre si uma aura de intangível, de imortalidade. Era, em vida, já uma lenda. Senna não era apenas o talento inato, cimentando em três campeonatos de pilotos, incomparável em muitas gerações, mas também a ideia que transparecia de quase perfeição, de ser competitivamente irresistível, em condições iguais imbatível no cockpit de um carro de Fórmula 1.

O choque e a estupefação com aquela notícia contrastavam com o que assistíramos cinco horas antes pelo televisor. Um terrível acidente no Grande Prémio de San Marino, no circuito Dino e Enzo Ferrari, em Imola. O Williams de Senna despista-se a toda a velocidade e colide estrondosamente com o muro da pista após atravessar uma estreia escapatória de gravilha. Foi essa a imagem transmitida: o carro a seguir a direto na velocíssima curva Tamburello, feita a fundo, a pouco menos de 300 km/h. Há peças do Williams pelo ar e uma enorme nuvem de poeira. O carro rodopia e imobiliza-se. A primeira coisa que nos ocorre foi que seria mais uma corrida de Senna, a terceira, na temporada, sem pontos. O ano de estreia do brasileiro na supercompetitiva Williams-Renault, para onde tão afincadamente quis transferir-se da então decadente McLaren, onde se fez tricampeão mundial.

A imagem televisiva fixa-se no local do acidente. Os segundos começam a passar: 10, 20, 30… sem que o piloto abandone o carro. É a imagem que espera ver, que se deseja ver. A que termina a angústia. O alívio. É assim em todos os acidentes violentos. Mas não há sinais de movimento no cockpit, após um ligeiro movimento do capacete, que se tornou, para sempre, simbólico do desfecho trágico.

Capacete do piloto brasileiro após o acidente fatal (ASF)

Havia maior tragédia…

Os comissários de pista aproximam-se do habitáculo, que parece intacto. Os carros de Fórmula 1 naquela época já tinha uma segurança passiva extraordinária, resistindo a fortes embates, protegendo o piloto. Mas não estava imune a vulnerabilidades. E naquele dia, havia provas recentíssimas. Na véspera, o austríaco Roland Ratzenberger, de 34 anos, perdeu a vida nos treinos do mesmo Grande Prémio, após colisão. Um dia antes, também nos treinos, o brasileiro Rubens Barrichello perdeu os sentidos após chocar com a barreira da pista. Ficou com muito más memórias desse acidente. Mais. Na própria corrida, no arranque, Pedro Lamy bate na traseira do Benetton do finlandês Jyrki Jarvilehto, que ficou imobilizado na grelha. O português — e o nórdico — saem ilesos, mas detritos dos carros são projetados para a bancada, atingindo vários espectadores.

Um fim de semana de corridas que já estava a ser suficientemente trágico, para ser ainda pior. Não podia sê-lo. Com Ayrton Senna ainda menos. Mesmo observando-se, agarrados ao ecrã do televisor, a tudo o que se passou nos longos minutos que se seguiram ao acidente na Tamburello, a todo o aparato da assistência médica ao piloto no local, a sua cuidadosa remoção do cockpit, o tempo em que esteve prostrado em maca rodeado de médicos em azáfama por trás de um lençol branco a proteger das câmaras, objetivas, dos olhares, o que tão grave ocorria. A evacuação em helicóptero e a evidência que ficara na gravilha… uma enorme mancha de sangue.

Depois, cinco longas horas de espera, em que nunca se quis crer em tragédia. Havia esperança, pensamento positivo. Mal, sim, mas nunca o pior. Mais do que isso, a ideia de imortalidade do piloto já imortalizado em vida. Até ao fatídico take da Lusa.

«Precisávamos de ouvir para acreditar»

Ayrton Senna foi transportado, em estado grave, de helicóptero, do Autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Imola, para o Hospital Maggiore, de Bolonha, a apenas 40 quilómetros de distância. Tinha passado pouco menos de uma hora desde o terrível acidente na fatídica curva Tamburello. O Mundo todo aguardava por notícias sobre o estado de saúde do piloto brasileiro. Até que começaram a surgir. A maioria más, mas por confirmar. Especulativas.

O brasileiro Lívio Oricchio foi um dos primeiros jornalistas a chegar ao hospital da cidade italiana, proveniente do circuito de Imola. Estava a fazer a reportagem do Grande Prémio, mais um entre todos da temporada de Fórmula 1. Em declarações ao Globo Esporte (GE), Oricchio contou o que experienciou nas horas em que esteve naquela unidade bolonhesa onde o tricampeão mundial foi assistido e acabou por morrer.

Entre a espera pelo primeiro relatório clínico, o jornalista falou com o médico Giovanni Gordini, um dos dois, com Sid Watkins, então médico oficial da Fórmula 1, que prestaram os primeiros socorros a Ayrton Senna logo após o acidente, ainda na pista, e depois durante a rápida deslocação aérea até ao hospital.

«Antes mesmo de lhe retirarmos o capacete, ficámos impressionados com a quantidade de sangue que perdia. Alguma artéria havia sido atingida, com certeza, e minha primeira preocupação foi tentar conter a hemorragia», disse Gordini, revelando que quem orientou a complexa remoção do capacete foi Sid Watkins.

«Logo que tivemos acesso à sua cabeça, sem o capacete e a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria. Vimos que a base craniana estava aberta e que perdia massa cefálica pelo ferimento, de mais de um centímetro de espessura, por trás da orelha. Para mim, tinha batido com a cabeça no muro. Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa craniana», explicou o médico italiano, citado por Lívio Oricchio no mesmo artigo do GE.

Tempo…

Às 16.30 horas, a equipa médica que assistia Ayrton Senna deu uma primeira conferência de imprensa, numa sala para o efeito do hospital, recorda o jornalista.

«Atrás da mesa, ao centro, estavam, de pé, Franco Servadei, Domenico Cosco, Andreolli, neurocirurgiões; Giovanni Gordini e a médica Maria Tereza Fiandri. O primeiro a falar foi Andreolli. ‘Não existe uma área específica do crânio em que podemos intervir, foram todas danificadas no acidente. O traumatismo é generalizado, bem como os danos em todo o tecido nervoso’, começou por explicar», menciona Oricchio, descrevendo o cenário na sala. «Nessa altura, mais de uma hora depois de Senna ter dado entrada, já havia muitos repórteres no hospital. Na sala de conferências, pude observar até doentes de pijama, internados, que ao saber da chegada de Senna em urgência tentavam também saber informações. A consternação pelo anúncio do doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, ídolo de tanta gente, aquele que parecia imortal, morreria numa questão de horas».

Franco Servadei forneceu mais detalhes: «A hemorragia que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o voo [de helicóptero] fizemos transfusão de um volume considerável de sangue. Ele também perdeu líquor, líquido cefalorraquidiano existente entre as camadas nervosas, que as protege. Devido à desaceleração sofrida pelo cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a deformar rapidamente as suas feições», explicou o neurocirurgião italiano, que fechou o encontro com os jornalistas.

No entanto, Lívio Oricchio conta que conseguiu interpelar Gordini à saída da conferência, que foi taxativo. «Senna teve uma depressão respiratória importante. Nós administrámos-lhe medicamentos que reverteram o colapso pulmonar, mas mesmo assim… Mesmo que ele não tivesse sofrido todos os danos no cérebro, só aquela depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido nervoso. Teria apenas uma vida vegetativa. O seu cérebro recebeu pouco oxigénio durante um tempo precioso. Na UCI, Senna chegou a ter uma parada respiratória. Nós reanimámo-lo», acrescentou o médico.

Morte cerebral

Às 17.55 horas, a médica Tereza Fiandri improvisou uma conferência de imprensa em pleno hall do hospital, junto às emergências. «Estava visivelmente emocionada. Mantinha silêncio absoluto. Uma multidão de repórteres aproximou-se para ouvi-la. Não se manifestou até que todos se calassem. Precisávamos de ouvir para acreditar», recorda Lívio Oricchio. «Senhores, o eletroencefalograma de Senna não acusa atividade elétrica… Senna está em morte cerebral», reproduziu o jornalista. «Foi só o que disse, retirando-se em completo silêncio, lentamente», disse.

Em nenhum momento, os médicos falaram em afundamento do osso frontal do crânio, causado por um componente do carro que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto, ressalva o jornalista brasileiro, mencionado pelo GE. No entanto, a investigação ao acidente revelou que o braço da suspensão dianteira direita que liga ao conjunto mola-amortecedor, denominada push-rod, soltou-se no embate do Williams no muro e perfurou o capacete de Senna, pela viseira, e ainda pressionou a cabeça do piloto contra o cockpit.

«Essa compressão causou a fratura da base do crânio, descrita pelo doutor Servadei. A barra atingiu ainda a artéria temporal, provocando a forte hemorragia», relata o jornalista brasileiro.

Às 19.05 horas, Tereza Fiandri irrompeu no hall central do hospital, recorda Oricchio. «Com os olhos marejados, claramente tinha chorado, falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto não se ouvia um ruído sequer à sua volta, apesar da presença de dezenas de jornalistas. Todos precisávamos de ouvir para acreditar»

«Senhores, por favor [pausa para respirar fundo]. Desde às 18.40 horas, Senna não regista atividade cardíaca», declarou [nova pausa], conta o jornalista. «Ninguém se manifesta, silêncio total. A médica sugere ter algo mais a acrescentar. Já com os olhos cheios de lágrimas, em voz trémula, afirma delicadamente: ‘Senhores, Senna morreu’».

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