«O único segredo é que não há qualquer segredo»
Colm o'Connell durante a conversa com A BOLA (DR)

A BOLA NO QUÉNIA «O único segredo é que não há qualquer segredo»

ATLETISMO28.02.202416:25

Brother Colm O'Connell, irlandês de 75 anos, chegou a Iten em 1976. Nada percebia de atletismo. Agora, 48 anos depois, tem três campeões olímpicos e múltiplos campeões do mundo treinados por ele. É uma lenda viva do atletismo mundial...

- A primeira pergunta que lhe faço já lhe deve ter sido colocada dezenas de vezes: como é que um missionário irlandês de 27 anos, que nada percebia de atletismo, veio parar ao Quénia e se tornou treinador de vários campeões olímpicos?

- Sim, é verdade [leve sorriso]. Cheguei ao Quénia em 1976, há já 48 anos. Após ter terminado os meus estudos na universidade, na Irlanda, decidi que gostaria de viajar enquanto ainda era jovem e aventureiro e, se possível, trabalhar noutra cultura que não a anglo-saxónica. Tinha duas possibilidades: Los Angeles nos Estados Unidos ou Iten no Quénia, que era um país relativamente novo [tornou-se independente da Grã-Bretanha em 1964]. A América não me atraía e, por isso, escolhi Iten e a Saint Patrick’s High School por ser um local mais aventureiro e desafiador para um jovem professor como eu. Assim, em março de 1976, com 27 anos, pouco antes dos Jogos Olímpicos de Montreal, cheguei ao Quénia, a Iten e à escola onde iria lecionar geografia.

- E como surgiu a sua ligação ao atletismo?

- Aqui, em Iten. Eu possuía um conhecimento muito fraco de atletismo antes de vir para aqui. Basicamente, tinha sido treinador de futebol, mas encontrei uma escola que tinha enorme tradição no atletismo. Havia muitos estudantes com muito talento atlético e e por causa disso, gradualmente, transformei-me num treinador de atletismo. No início limitei-me a aprender e aprendi muitas coisas básicas e valiosas sobre treino, sobretudo porque estava muito aberto a aprender e a observar. Conheci e aprendi com muitos atletas do Quénia, como os grandes Kipchoge Keino [campeão olímpico de 1500 m em 1968 e de 3000 m obstáculos em 1972], Mike Boit [3.º nos 1500 metros olímpicos de 1972] e Amos Biwott [campeão olímpico de 3000 m obstáculos em 1968], por exemplo. Havia tradição no atletismo do país e assim, através da modalidade, comecei a integrar-me na cultura do Quénia. Depois, aprendi a parte mais formal e técnica do treino ao trabalhar num programa fundado pelo governo da Alemanha de leste. Aprendi a estruturar programas, a lidar com as táticas e a tecnologia envolvida no desporto Os meus primeiros cinco anos no Quénia foram apenas de aprendizagem.

O grande Kipchoge Keino (IMAGO)

- Peter Rono, campeão olímpico dos 1500 metros em 1988, foi o seu primeiro grande atleta.

- Sim, mas o meu primeiro atleta a representar o Quénia a nível mundial foi em 1984. Eu tinha dois jovens da Saint Patrick’s High School na equipa que foi a Los Angeles. Foi o meu primeiro momento de exposição. Dois anos depois, tivemos o campeonato do mundo de juniores em Atenas e, dos 12 atletas que representaram o Quénia, nove vieram do meu programa e ganhámos oito medalhas. Então, gradualmente, comecei a perceber um pouco mais sobre o potencial dos atletas nessa área. Dentro disso, cresceu o meu primeiro campeão olímpico em 1988 em Seul, Peter Rono nos 1500 metros.

- Curiosamente, o senhor nunca esteve presente nuns Jogos Olímpicos, apesar de ter alguns campeões olímpicos. Por que é que prefere ficar em Iten?

- Sim, nunca fui a uns Jogos. Considero-me apenas uma pessoa envolvida na identificação, alimentação e desenvolvimento de novos talentos. Assim, nunca ponderei assistir, ao vivo, a uns Jogos Olímpicos, pois nunca quis ficar muito ligado à cena sénior.

- Reformulando a pergunta: confirma que, quando David Rudisha ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, batendo o recorde do Mundo dos 800 metros, o senhor estava em Iten?

- Sim, fiquei em casa, sozinho, a ver a prova.

Os 800 metros de David Rudisha (IMAGO)

- Ao menos bebeu uma cerveja e celebrou ou tomou chá e foi deitar-se?

- Entre a medalha de ouro de Peter Rono em 1988 e a de David Rudisha em 2012, tive outros grandes atletas. Porém, ficarei sempre associado com o David por causa da performance icónica em Londres, em 2012. Ele não é do grupo étnico local, ele é um Maasai, o que é, por si só, único. Ele correu esses 800 metros no seu estilo habitual, correndo na frente sem dar espaço para ninguém brilhar. Assisti à prova, calmamente, na minha sala de estar, em Iten. Porém, o dono do Kerio View Hotel ligou-me para eu ir lá beber uma cerveja e celebrar. Claro que tive de sair de casa e ir beber a tal cerveja, mas depois fui dormir…

- Conversou com ele antes da final para escolherem a tática?

- Não. Ele treinou aqui, muito quieto, exatamente onde você está sentado agora. Este era o seu campo de treino, preparando-se para Londres, sempre muito isolado do mundo exterior. A corrida dele nesses Jogos não foi propriamente uma surpresa, pois ele tinha vencido várias corridas assim, liderando do princípio a fim. Usara a mesma tática nos dois ou três anos anteriores. Não foi um segredo. O que surpreendeu as pessoas foi o fato de que não apenas ganhou a medalha de ouro, como estabeleceu um recorde mundial icónico. O primeiro e até hoje único a correr os 800 metros abaixo de 1.41 minutos [1.40.91].

- Quando europeus, americanos e asiáticos chegam a Iten, têm o sonho de encontrar o segredo dos corredores quenianos: é a altitude, a dieta, o treino, o foco?

- Não há segredos no desporto. Não acho que façamos algo de diferente, de único, ou algo atrás de portas fechadas que nos traga grandes atletas. As táticas no futebol podem ser um segredo, mas no atletismo? Acho, sim, que após tantos êxitos de quenianos nos últimos 30 ou 35 anos, as pessoas começaram a acreditar que havia algum segredo. Às vezes a crença é suficiente para pensarmos que ele existe. Podemos sempre ir para certas partes de França, Portugal ou Brasil e pensar que vamos descobrir o segredo de serem tão bons no futebol. Mas há segredo? Não me parece. As pessoas vêm para Iten e percebem como os quenianos se treinam e qual a cultura criada em Iten nos últimos anos. Se você acordar às seis da manhã, encontrará quenianos a treinarem-se na rua. E se lhes perguntar qual o treino que estão a fazer, eles dizem. Ou seja, não há qualquer segredo. Aliás, o único segredo é não haver segredo. Quem vem para cá percebe, sim, uma diferença: os quenianos estão sempre focados. Muitas pessoas não perceberão o quão intensamente os quenianos se treinam. Há quem pense que, porque há tanto talento, os quenianos não precisam treinar. É falso. Posso pensar que, por vocês, portugueses, serem tão bons no futebol, há algum segredo ou que não precisam de se treinar. Posso pensar que são todos Ronaldos, mas você, que é português, sabe que não é verdade. O talento é apenas uma semente. É claro que temos vantagens naturais: clima, atmosfera, altitude.

- Os europeus queixam-se muito sobre a falta de condições de treino, mas em Iten, quase sem condições, tecnologia, pistas a sério, os quenianos batem recordes e vencem as provas mais importantes….

- [interrompendo]… e imagine o que era há 40 anos! Tive de ser muito criativo [sorri]. Atualmente, o atletismo avançou muito, em relação a dieta, fisiologia, treino, táticas. Quando cheguei a Iten, o atletismo era amador. Os quenianos corriam para se divertir, para representar o país, pela honra e glória. A motivação era bem diferente. Agora temos ginásios, massagistas, nutricionistas, fisioterapeutas…

- Consegue encontrar alguma razão objetiva para que a europa tenha perdido o comboio relativamente às corridas de fundo?

- Quando cheguei ao Quénia em 1976 e por toda a década de 80, os atletas europeus eram muito fortes no meio-fundo. Havia Sebastian Coe, Steve Ovett, Steve Cram e Peter Elliott, por exemplo. Particularmente os britânicos, eram muito fortes. E até Carlos Lopes, Fernanda Ribeiro, Mamede, Rosa… Todos muito fortes naquela época. Então, quando os quenianos apareceram, os europeus começaram a vir para lugares como Iten para se treinar.

-E perceberam que, afinal, não era necessário muito para se treinar bem…

Sebastian Coe e Steve Ovett nos Jogos de 1984 (IMAGO)

- O atletismo é um desporto simples e básico. Os quenianos, com poucas facilidades, dominam o mundo do meio-fundo, sobretudo na estrada. A passagem por Iten obrigou os europeus a pensar: talvez existam aspetos interessantes nos treino dos quenianos. Acho que eles, os europeus, fizeram isso na última década ou mesmo 25 anos e agora temos muitos atletas europeus formidáveis a emergir, o que é ótimo para o atletismo. Houve um período, nos anos 90, que a europa foi submergida pelos quenianos.

 - Será que a europa voltará, um dia, a ser mesmo competitiva com os quenianos?

-  Estou muito feliz por ver a emergência dos atletas europeus, americanos e brasileiros. O talento não vai embora. Será que o talento dos atletas britânicos se esgotou nos anos 80 e 90? Não me parece. Os genes ainda está lá. O que mudou, sim, foi o estilo de vida na europa. Outros desportos começaram a tornar-se mais glamourosos para jovens. E estes gostam de desportos glamourosos. A cobertura televisiva começou a diminuir e, tirando os anos olímpicos, o atletismo passa um pouco para trás do cenário principal.

- Significa que os anos de ouro do atletismo acontecem apenas de quatro em quatro anos?

- O atletismo é a modalidade mais icónica dos Jogos Olímpicos. É o desporto  superior, aquele que a maioria das pessoas vai ver e que se realiza no estádio central. Muitas pessoas, que normalmente não acompanham de perto o atletismo, seguem de quatro em quatro anos os Jogos Olímpicos. Querem saber o que fez o Usain Bolt, o David Rudisha, as irmãs de Dibaba, o Ingebrigtsen. De repente, de quatro em quatro anos, o atletismo é o desporto número 1 no mundo, mesmo que tenhamos futebol, voleibol, golfe, ténis e outros desportos nos Jogos. Os mais talentosos nestas modalidades serão figuras secundárias nos Jogos. Se você perguntar a uma pessoa numa rua em Lisboa quem ganhou o torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 2020, quantos acha que responderão certo?

O símbolo da St. Patrick High School de Iten (DR)

- Poucos…

- Exato. O atletismo é único porque se torna central quando se chegamos aos Jogos. E não há remuneração financeira direta de alguém ser campeão olímpico n os 100 metros ou na maratona, por exemplo. Quem ganha a medalha de ouro torna-se a pessoa mais orgulhosa do seu país e do mundo. É um desporto icónico e há remuneração.

- Porém, indiretamente, um campeão olímpico ganha muito dinheiro.

- Sim, é verdade. Mas conheço alguns atletas, incluindo quenianos, que ganharam títulos mundiais, que bateram recordes mundiais e que tiveram grandes contratos com marcas desportivas, mas que nunca ganharam nos Jogos Olímpicos. E sabe o que eles me dizem?

- Não.

- Que entregariam tudo de volta para ganhar uma medalha de ouro olímpica. Dizem-me: leva tudo e dá-me uma medalha nos Jogos. Em 2024, dentro de meses, teremos os Jogos Olímpicos de Paris e para qualquer atleta de topo este é o objetivo número 1. É assim que vejo o atletismo: o desporto número 1 do mundo.

- Como assim?

- Você tem de correr para praticar qualquer desporto. Seja futebol, voleibol, ténis, basquetebol. Tem de correr. Correr é o mais básico do desporto. Nunca vamos escapar de correr. Mesmo uma equipa de futebol nunca escapará ao exercício mais básico que há: correr. Além disso, ao contrário do futebol, por exemplo, podemos correr sozinhos ou em grupo.

- Os melhores atletas que o senhor treinou eram atletas de pista, não de estrada. Opção sua?

- O atletismo está a mudar da pista para a estrada. Cada vez mais maratonas, meias-maratonas, corridas de 5 e 10km. Sou um treinador de pista, nunca tive um atleta com sucesso na estrada. Sabe porquê? Porque a pista é a base de tudo. No ano passado, no mundial de Budapeste, os homens do Quénia não ganharam qualquer medalha de ouro. Isto é uma preocupação minha. Como disse, aconteceu uma mudança demasiado brusca. Talvez haja vantagens, sim, em os atletas passarem para a estrada. Talvez seja um caminho mais lucrativo financeiramente. Talvez porque passou a haver uma cultura de estrada e alguns dos nossos atletas  mais icónicos são agora corredores de estrada.

- Tirando a parte financeira, encontra mais razões para a transferência de atletas da pista para a estrada?

- Há várias razões. Precisamos, sobretudo, de nutrir mais os atletas de pista. Todos os meus atletas são atletas de pista porque os jovens começam na pista no Quénia. Não há competições de estrada nas escolas, apenas competições de pista. Esse é o meu foco. As competições de pista são o lado competitivo do meu envolvimento e do meu treino. Sabia que fomos os reis dos 3000 metros obstáculos durante 40 anos e, de repente, não ganhamos nada em obstáculos há quatro anos?

- Perderam os Jogos de 2020 e os Mundiais de 2022 e 2023 para um marroquino e nem um vice-campeão tiveram…

- Exato. A parte financeira é sempre motivante para qualquer atleta e eles tendem a  mover-se para onde dinheiro está, o que é compreensível. Nada contra. Porém, vejamos: quantas corridas de estrada há nos Jogos Olímpicos?

Soufiane El Bakkali, campeão olímpico de 3000 m obstáculos em 2020 (IMAGO)

- Uma: a maratona.

-Exato. E ganhá-la, como o vosso Lopes bem sabe, é o pico dos picos na carreira de atletismo.

Carlos Lopes corta a meta como campeão olímpico da maratona de 1984 (IMAGO)

- Três dos últimos quatro campeões olímpicos da maratona são quenianos: Samuel Kamau Wansiru em 2008 e Eliud Kipchoge em 2012 e 2016.

- Sim, é verdade. Mas isso é na estrada. Muitas pessoas não sabem, mas o Quénia não teve qualquer campeão olímpico de 10 mil metros desde 1968. E ainda assim somos considerados os reis das corridas de longa distância. Ganhámos uma vez a medalha de ouro desde 1968! não ganhamos os 5 mil metros desde 1988 em Seul, com o John Ngugi. Quem dominou os 5000 metros de 1992 para cá? Um etíope, um ugandês, Mo Farah, El Guerrouj, Cheptegei.

- Chegámos a Iten com ideia de descobrir o segredo e o senhor aponta o dedo à quase falência do Quénia nas provas masculinas de pista…

- Quando olho para as grandes provas de fundo e meio-fundo, dos 1500 m à maratona, vejo o aparecimento de grandes etíopes: Haile Gebrselassie, Kenenisa Bekele, Selemon Barega, Sileshi Sihine, Assefa Mezgebu, Tariku Bekele ou Tamirat Tola. E quantos quenianos? Dois ou três. E nas mulheres é igual: Derartu Tulu, Gete Wami, Tirunesh Dibaba, Almaz Ayana, Ejagayehu Dibaba ou Letesenbet Gidey. E quenianas? Duas ou três? Medalhas, medalhas, medalhas, recordes, recordes, recordes. São tempos desafiantes para o atletismo de pista do Quénia.

- A ideia que fica é que o senhor não aprecia as corridas da estrada, mas, excluindo os Jogos Olímpicos, há imensas provas de estrada: milha, cinco kms, 10 kms, meia-maratona, maratona…

- Não tenho problema com competições de estrada, mas essas competições não deveriam crescer à custa da pista. Temos de prestar mais atenção à pista. Os maiores maratonistas de há uns anos tinham primeiro uma carreira na pista e só por volta dos 30 anos passaram para a maratona, Foi assim com Carlos Lopes, Kenenisa Bekele, Eliud Kipchoge. Era todos atletas de pista e só depois se tornaram grandes corredores de maratona. Agora aparecem na estrada logo aos 22 ou 23 anos. Não os culpo, se é isso que eles querem fazer. Apenas digo que, nos bons velhos tempos, você era primeiro um atleta de pista. Treinou para a pista ganhou na pista e só mais tarde você se tornaria maratonista. As pessoas podem argumentar: mas o dinheiro está na estrada. É verdade. Mas já reparou que, tirando Campeonatos do Mundo, da Europa, Jogos Olímpicos e Commonwealth, quase não há corridas de 10.000 metros em pista. Há uma ou duas décadas havia grandes e icónicas corridas de 10.000 metros em pista. Eram verdadeiras batalhas. E agora quase não há…

Eliud Kipchoge e Kenenisa Bekele (IMAGO)

- Terá a ver com patrocínios?

- Talvez, não sei bem responder-lhe. É mais fácil receber patrocínio para uma maratona do que para uma corrida de 800 metros? Provavelmente. Numa maratona podem entrar 20 ou 25 mil pessoas e podem participar maratonistas de elite ao lado de futebolistas conhecidos, atrizes, modelos, políticos. Aparecem pessoas que fornecem dinheiro de fontes diversas. É como um programa de turismo. Podemos correr a maratona de Lisboa, de Nova Iorque ou de Londres e ir conhecer a cidade. Imagine que você é dono de uma grande marca mundial, prefere patrocinar uma corrida de 800 metros ou uma maratona?

- Talvez a maratona…

… certamente a maratona! Numa corrida de 800 metros tem um minuto e 45 segundos, no máximo, de exposição televisiva, enquanto numa maratona tem cerca de duas horas. Claro que prefere apoiar uma maratona! Você é fã de Bolt e vê-o correr durante dez segundos; é fã de Kipchoge e vê-o correr durante duas horas. Duas horas a fazer publicidade! Esta é a realidade do atletismo. E não estou a criticar, apenas a dizer que os organizadores de provas de pista têm um grande desafio pela frente.

«Recorde do mundo dos 800 metros

baixou 82 centésimos em 43 anos!»

Colm O'Connel comparou as diferenças entre Sebastian Coe, Wilson Kipketer e David Rudisha, os três últimos recordistas do mundo de 800 metros: «Fisicamente, eles eram muito diferentes e também personagens bastante diferentes e com abordagens diferentes em cada corrida. Sebastian Coe não era excecionalmente alto, como sabemos. Wilson Kipketer era um pouco mais alto, muito sossegado, pensava profundamente e não era tão exuberante, como Coe ou Rudisha. David era radicamente diferente de todos eles: alto, a rondar o 1,90 metros, exuberante, com uma personalidade muito confiante em frente aos jornalistas e muito empolgante. Os três foram oitocentistas icónicos».

Rudisha ficou a centésimos de segundo de baixar do impensável 1.40 e Colm O'Connel pondera na possibilidade de, um dia, alguém baixar desse tempo: «É interessante pensarmos nisto. Em 1981, Sebastien Coe derrubou o recorde mundial dos 800 metros: 1.41,73. Este recorde durou 16 anos, até 1997, quando foi derrubado por Wilson Kipketer: 1.41,11. David Rudisha tem agora esse recorde: 1.40,91. Passaram 43 anos e o recorde passou apenas por três atletas e baixou menos de um segundo: de 1.41,73 para 1.40,91! No mesmo período o recorde dos 10 000 metros passou de 27.22,47 para 26.11,00. Mais de um minuto e 11 segundos. Proporcionalmente, o dos 800 metros deveria ter caído quase seis segundos. Ou seja, podemos colocar o recorde dos 800 metros como um dos mais difíceis de quebrar. Correr 800 metros é muito diferente de correr 1500 metros ou de correr 3000 metros obstáculos.»

Colm O'Connel explica as diferenças: «Sebastian Coe era um formidável corredor de 1500 metros e ganhou por duas vezes o ouro olímpico na distância [1980 e 1984]. Atualmente, é muito mais difícil vencer duas vezes seguidas. O grande Alberto Juantorena ganhou, em 1976, em Montreal, os 400 metros e os 800 metros. Provavelmente será o último a fazê-lo. Os 800 metros tornaram-se uma prova muito especial. Não é sprint, não é endurance, mas é sprint e é endurance. Está exatamente no meio de ser sprint ou endurance.»

«Ganhar a maratona com 37 anos

foi histórico para Carlos Lopes»

Quando falou dos Jogos Olímpicos de 1976 e 1984, Colm O'Connel aproveitou para fazer referência a Carlos Lopes: «Como você se deve lembrar, o Quénia boicotou os Jogos de Montreal de 1976 e também os seguintes, os de Moscovo, em 1980. Entre Munique-1972 e Los Angeles-1984, o Quénia não participou em nenhuma edição. Assim, 1984 foi uma espécie de janela de oportunidades para mim, para evoluir e envolver-me no treino e para me alimentar de novos talentos. Em 1984 comecei a desenvolver maior interesse na cena internacional e, claro, segui a trajetória de Carlos Lopes na maratona de Los Angeles. E por coincidência, nessa prova em que o vosso Carlos Lopes se tornou campeão olímpico, um irlandês como eu, o John Treacy, ganhou a medalha de prata. Eu estava a aprender tudo sobre treino e um dos atletas mais icónicos dessa época foi Carlos Lopes. Ganhar a maratona com 37 anos foi histórico. Mas não me esqueço daquele luta titânica de 1976 com Lasse Virén…

Carlos Lopes, Lasse Virén e Brendan Foster no pódio olímpico dos 10 000 metros em 1976 (IMAGO)

«Há quem ganhe muito dinheiro

e acabe a carreira muito pobre»

Colm O'Connel lança um alerta para os atletas quenianos que serve, igualmente, para atletas de todas as latitudes. Incluindo Portugal: «Muitos dos quenianos andam nas corridas de estrada para ganhar pequenas somas, não os grandes dinheiros. Apenas o suficiente para sobreviver. Nunca se tornarão ícones na estrada. Nem sempre se pode ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, nem sempre se pode arranjar um grande contrato com uma marca desportiva, mas podemos garantir uma vida melhor através do desporto. Temos de suar se quisermos alcançar algo. Aprendemos o valor do sacrifício, o valor do foco e da concentração. Quantas vezes um grande atleta falhou antes de chegar ao topo? Muitas. E falhará mais vezes. Como lidar com a falha? Como lidar com a dificuldade? Como lidar com a pressão? Como lidar com as expectativas pessoais, as expectativas da comunidade, as expectativas do país, as expectativas da família, as expectativas do treinador? Como investir o dinheiro que um atleta ganha? Alguns atletas ganharam muito dinheiro e cinco ou seis anos depois de terminarem a carreira estão pobres.