Das obras no Algarve à medalha olímpica... em oito meses
David de Pina conquistou, no boxe, a primeira medalha olímpica para Cabo Verde (IMAGO)
Foto: IMAGO

Das obras no Algarve à medalha olímpica... em oito meses

JOGOS OLÍMPICOS05.08.202409:30

David de Pina conquistou a primeira medalha da história de Cabo Verde; há três anos mudou-se para Portugal, mas teve de ir trabalhar para a construção civil para ter comida

PARIS – Janino Livramento esteve dois anos a preparar-se para vir aos Jogos Olímpicos de Paris. O professor de educação física na Ilha do Sal, em Cabo Verde, fez um plano e foi juntando dinheiro para conseguir viajar para a capital francesa neste Verão, sobretudo, com o desejo de ver uma cerimónia de abertura histórica, por ser feita pela primeira vez fora de um estádio.

Porém, o plano não saiu como ele desejava. A lotação de público para o momento inaugural foi diminuindo e quando chegou a Paris na véspera desse evento com que sonhara, já sabia que dificilmente conseguiria estar presente nas bancadas montada nas margens do rio Sena.

Contudo, se a ideia inicial não foi cumprida, as coisas correram muito melhor do que Janino podia sonhar. Porque falhou a cerimónia de abertura, é verdade. Mas assistiu a um momento histórico na história de Cabo Verde. Vestiu, orgulhosamente, a camisola com a bandeira do seu país e sentou-se quase na primeira fila para ver David de Pina conquistar a primeira medalha olímpica da história do país.

Janino era um dos cerca de 20 caboverdianos sentados nas bancadas da Arena montada em Paris Norte para a competição de boxe.

Janino Livramento viajou de Cabo Verde e acabou a assistir à conquista da primeira medalha do país nos Jogos Olímpicos

E sofre durante os três assaltos do combate da meia-final entre o seu compatriota e Hasanboy Dusmatov, do Uzbequistão, na categoria de 51 kg.

«Desisti das obras para ganhar a medalha»

Tal como Janino, David de Pina também tinha um plano para estar em Paris 2024. E hoje, ele pode dizer que o plano deu certo. Mas há poucos meses, parecia-lhe impossível que isso viesse a acontecer.

A treinar em Portugal, com o técnico Bruno de Carvalho, desde 2021, após participar nos Jogos Olímpicos de Tóquio graças a um wild-card, o cabo-verdiano recebe uma bolsa de solidariedade olímpica de pouco mais de 600 euros. E em outubro, com o dinheiro cada vez mais escasso, desistiu boxe. Precisava de um trabalho que colocasse comida na mesa para ele, a mulher e os dois filhos.

«Fui trabalhar nas obras para o Algarve. Trabalhava 10 horas por dia. Imaginem só. Um atleta cheio de talento e potencial, a trabalhar nas obras 10 horas por dia. Trabalhava com um sonho na mala. Foi doloroso para mim, porque eu amo o boxe, mas fui obrigado a deixar. Afinal, que ia cuidar da minha família? Quem ia dar de comer aos meus filhos e pagar a minha renda?», questionou, em conversa com os jornalistas, após o combate das meias-finais.

E desengane-se quem acha que David tem medo de trabalhar. É de paixão que se fala aqui.

«Aprendi carpintaria desde pequeno e foi nisso que fui trabalhar. Ganhava muito bem, porque tinha um patrão muito bom. E eu não me importava de trabalhar, o problema foi que tive de parar com aquilo que gosto de fazer para ir para a obra. Foi uma boa experiência, mas eu prefiro fazer boxe. Prefiro vir aos Jogos Olímpicos ganhar uma medalha. Por isso, desisti das obras para conseguir esta medalha», sublinha.

«Agora acredito que sou alguém»

Ainda antes do combate, Pina já tinha feito história. Porque no boxe olímpico, os semi-finalistas têm sempre direito a medalha. E Cabo Verde já garantira, 28 anos depois da primeira participação, em Atlanta 1996, a primeira subida ao pódio.

«Acredito que agora já sou alguém. As pessoas sentem aquilo que eu fiz. Sentem o meu boxe, que foi muito bem desenhado pelo meu treinador Bruno de Carvalho. Agora eu entrei nos quatro melhores do mundo. Sou o melhor de África, dei um show e venci um antigo medalhista africano, no combate anterior», declarava, eufórico.

«Agora as pessoas reconhecem o meu talento e o meu trabalho. Por tudo que eu passei, eu acho que mereço ser reconhecido como um excelente atleta», acrescentou.

David Pina fez história em Paris para Cabo Verde (IMAGO)

E David não fez todos os sacrifícios que o levaram ali apenas por ele. Fez pela família. Fez por todo o país, que agora o espera ansioso para ver como brilha uma medalha olímpica.

«Se fosse por mim, talvez tivesse desistido. Mas eu lutei forte para dar melhores condições de vida à minha família, para dar ao meu povo uma medalha e colocar-nos na história dos Jogos Olímpicos. Isto é uma história de superação que mostra que quem desiste, fica para trás. Quem pára de lutar, é esquecido e morre», decreta, o lutador com os icónicos totós que quase toda a sua comitiva adotou também.

Janino não imitou os totós do agora ídolo. Manteve os seus caracóis, talvez também porque só na véspera conseguiu assegurar bilhete para estar presente naquele momento histórico. E que bem soube. Qual cerimónia de abertura, qual quê!!

«É uma grande emoção saber que vou assistir ao momento histórico em que Cabo Verde vai ganhar a primeira medalha olímpica. Somos um país de 500  mil habitantes e vamos entrar na história», orgulha-se.

Afinal, também ele viveu um sonho. «Sempre quis estar nos Jogos Olímpicos. O primeiro plano era estar como atleta. Depois, como treinador de atletismo. Candidatei-me para ir como voluntário a Londres e ao Rio. Mas só consegui vir a Paris, como turista. E não trocava, porque vou ver história», orgulha-se.