Brutalidade nas montanhas dos Dolomitas

Ciclismo Brutalidade nas montanhas dos Dolomitas

CICLISMO25.05.202314:57

Quando se olham de frente, parece que se admira três dedos de rocha que apontam harmoniosamente para o céu. O Tre Cime di Lavaredo - formado pelo Cima Grande que chega a 3.000 metros acima do nível do mar, Cima Oeste e Cima Piccola, são sem duvida, uma das faces mais belas e conhecidas dos Dolomitas.

Ao mesmo tempo pode-se dizer, que eles também são um dos rostos mais emblemáticos da história da Volta à Itália, que chegou à base do Tre Cime, no Auronzo Hut por sete vezes, sempre com grandes jornadas de ciclismo. Primeiro porque sempre foi inserido como final de etapa, o que significa que seja pela vitória na etapa ou pela classificação geral, os ciclistas sempre se enfrentam de frente, não poupando energias e atacando ao acaso em busca da glória, quer esteja a chover ou a nevar.  

Depois porque a subida é daquelas que pelas suas caraterísticas, só pode ser selecionada, sendo extremamente dura mesmo que não seja muito longa. Além disso, esta chegada quase sempre foi o culminar de uma etapa nos Dolomitas, aquelas cuja data, ano e protagonistas todos se lembram, nas quais o  Passo Giau, Passo Tre Croci e outras míticas subidas foram ultrapassados antes da ascensão final.

A subida é feita diretamente nas margens do Lago Misurina, por um quilómetro e meio a estrada sobe com um desnível médio de mais de 10% e rampas com 18%. Ao chegar  ao Lago Antorno, a estrada fica nivelada por alguns quilómetros antes de subir novamente em Malga Rin Bianco, pelos últimos 4 km muito difíceis. Os últimos 3.000 metros sobem progressivamente para 12%, exaltando quem já conseguiu poupar alguma energia e aniquilando quem já não tem gasolina no depósito. A que chega ao refúgio Auronzo é uma estrada que não tem saída, não é uma passagem alpina,  mas por onde se pode chegar mais rápido ao topo a pé.

A primeira vez que a Volta à Itália visitou Tre Cima di Lavaredo foi em 1967, o jornalista da Gazzetta dello Sport, Bruno Raschi, chamou-as de “Montanhas da Desonra” pelo que aconteceu na prova. De facto aquela etapa de 8 de junho, que levou o pelotão de Udine ao Tre Cime di Lavaredo, terminou em farsa: a inédita subida final foi assediada pelos seguidores do ciclismo e quando os ciclistas iniciaram a subida, com Wladimiro Panizza sozinho na liderança com 3 minutos de avanço, o carro do presidente do júri fez o possível para afastar os espetadores, enquanto atrás acontecia exatamente o contrário, com os ciclistas subindo agarrados aos carros e motos e os espetadores dando prolongados empurrões em todos os ciclistas. O resultado é que Panizza foi facilmente apanhado e saltou Felice Gimondi que venceu a etapa, que não hesitou em definir como “vergonhosa”, as classificações foram anuladas e Silvano Schiavon manteve a camisola rosa.

Mas não podia acabar assim, o Tre Cime di Lavaredo merecia ser lembrado de outra forma, então a organização decidiu incluir um final também em 1968, para acabar definitivamente com os problemas do ano anterior. E não podia haver melhor vingança, porque nos 213 km de Gorizia a Tre Cime di Lavaredo começou a ganhar forma o mito de Eddy Merckx, conhecido por “Canibal”, que na subida final, à chuva, atacou, recuperou 9 minutos aos 16 fugitivos, venceu a etapa e conquistou a camisola rosa, que levaria até ao fim, e colocou a sua primeira Grande Volta no quadro de honra. Gianni Motta e Italo Zilioli chegaram com mais 4 minutos, o atual campeão Felice Gimondi cortou a meta a chorar, finalizou em terceiro lugar na geral, com Vittorio Adorni na segunda posição.

Seis anos depois, Eddy Merckx já tinha vencido tudo o que podia, era o ciclista mais forte de todos os tempos e na etapa Pordenone - Tre Cima di Lavaredo em 6 de junho de 1974,  o belga que envergava a camisola rosa tinha os olhos no quinto triunfo final. Desta vez a subida final foi um longo sofrimento, José Manuel Fuente deu mais um dos seus shows como puro trepador, voando sozinho para a vitória na etapa, mas os adversários de Merckx eram Gimondi e um talentoso neoprofissional, Gianbattista Baronchelli, que decidiu atacar o “canibal” e tentar revolucionar o Giro. Merckx perdeu a roda do seu jovem rival nos últimos 3 quilómetros, Baraonchelli - que em 1981, no Giro que venceu Giovanni Battaglin, desmaiou na chegada a Tre Cime di Lavaredo devido a uma traqueíte, quando era o virtual camisola rosa.

Mas não se pode esquecer quando um jovem siciliano de camisola rosa, nascido a poucos quilómetros do Estreito de Messina, surgiu no meio de uma tempestade de neve, de braços erguidos e sem luvas para comemorar o seu primeiro triunfo no Giro de Itália. Era o ano de 2013 e Vincenzo Nibali, estava a 24 horas do grande final em Brescia, onde selou o seu domínio com uma das mais belas façanhas do ciclismo europeu.

As tentativas de Fabio Duarte, Rigoberto Uran e Carlos Betancur, que tiveram que lutar pelo segundo lugar, foram em vão. Entre os adversários do “Tubarão” também esteve Cadel Evans, cujo travão traseiro da bicicleta congelou nos últimos quilómetros, confirmando que nos Dolomitas, a 2.300 metros de altitude, nunca de sabe no que se está para acontecer.