«É um desafio gigantesco, mas desde que comecei a treinar foi nisto que sonhei», diz o treinador do campeão Botafogo, em entrevista a A BOLA. Encantado com o clube, o patrão Textor, a academia e a atitude do plantel, técnico português atribui o favoritismo teórico ao Palmeiras e Flamengo. «Mas na prática vamos ver»
- Cinco anos de futebol latino-americano: é mais difícil do que o europeu? E há diferenças entre Equador, México e Brasil?
- O jogo é diferente, na Europa mais tático, aqui há mais talento individual. No Equador, apesar de haver pressão, é menor, no México aumenta, quer dos media, quer dos adeptos, e no Brasil é exponencial, aqui vivem com muita paixão o dia a dia do clube, os êxitos ou a falta de êxitos do clube, estão todos os dias em cima de treinador e jogadores. Diz-se que é o país do futebol e, de facto, é um país que tem uma paixão, para o bem e para o mal, diferente de todos os outros países onde estive.
- A experiência no Bahia serviu-lhe de 'universidade' para encarar o Botafogo?
- Sem dúvida. Depois da minha experiência no Bahia, onde acho que fizemos um bom trabalho – ganhámos um título [estadual baiano], chegamos aos quartos na Copa, quando fomos eliminados por penáltis [pelo Grêmio], mas no Brasileirão, sim, sofremos mais –, sou hoje um treinador muito mais preparado, ainda que sejam realidades diferentes, apanhei o Bahia numa reconstrução, a vir da Série B, ano zero do Grupo City, 25 novos jogadores, agora apanho o Botafogo campeão brasileiro e da Libertadores, com plantel feito, apesar de entradas e saídas.
Filipe Coelho, treinador sub-21 do Chelsea e antigo técnico das camadas jovens do Benfica, falou sobre o seu compatriota e a sua nova aventura no Brasil, recordando a altura em que trabalhou com ele nos sub-14 das águias
- Chegar a esse Botafogo, tão campeão, é o maior desafio da carreira?
- Eu olho para os desafios sempre com grande exigência, no Benfica tinha de desenvolver jogadores e ganhar campeonatos, no Independiente del Valle tinha de vender jogadores e ganhar, a minha carreira tem sido a pulso, ninguém me ofereceu nada, agora é verdade que chego a um campeão, mérito do Artur, e isso, somado à dimensão do clube, é um passo muito grande, um desafio gigantesco mas desde que comecei a treinar foi com este tipo de desafio que sonhei, equipas que jogam para ganhar, prefiro a pressão de ganhar à de jogar para não descer.
- Falou com Artur Jorge ou conta falar?
- Falámos por mensagem, até porque se fez um barulho desnecessário quando eu respondi que tinha 250 mensagens no telemóvel e me perguntaram depois se alguma era do Artur e eu disse que não. Por isso, tive o cuidado de lhe ligar e dizer que não havia polémica nenhuma, até porque ele não tinha obrigação nenhuma de mandar mensagem e porque fomos colegas de turma no UEFA Pro e temos boa relação. Ele disse que estava tudo tranquilo, que tinha orgulho de eu ser o sucessor dele e trocamos ideias rápidas.
Semana histórica e absolutamente louca para Artur Jorge que junta a conquista inédita da Libertadores à do Brasileirão, que fugia ao Fogão há 29 anos. Uma estátua para o treinador português?
- Sentiu a equipa mais eufórica por 2024 ou mais ferida pelos títulos perdidos em 2025?
- O perfil deste grupo é de não entrar em euforias, é um grupo trabalhador, não houve um treino, em 16 que dei, em que tivesse de intervir para melhorar a atitude, não, aqui é tudo a mil e eles acabam o treino e ainda vão fazer ginásio. Já as supercopas e o estadual perdido, aí sim, deixam mossa, por isso tentamos fazer uma ponte no tempo entre a Libertadores e o nosso primeiro treino, embora a realidade pelo meio tenha sido importante para tirar ilações e aprender lições. Em resumo, encontrei um grupo sedento que não está contente com o que ganhou.
- A equipa perdeu dois dos jogadores mais decisivos, Almada e Luiz Henrique. Santi, Arthur e Igor Jesus podem substituir?
Não há substitutos para o Luís Henrique e para o Almada, só há um Luís Henrique e só há um Almada, não vou olhar para o Arthur como novo Luís Henrique, nem para o Santi como novo Almada. O meu desafio é tentar que o coletivo absorva as características de quem chegou, encaixar as peças, aproveitando o trabalho do Artur Jorge, dentro de uma ideia de jogo que não tem grandes mudanças, porque seria pouco inteligente fazer mudanças radicais, mas com algumas coisas para retocar e inserir.
- Concorda que os principais favoritos no Brasileirão são Palmeiras e Flamengo?
- Na teoria e no investimento, sim, mas como a teoria muitas vezes é contrariada pela prática, nós queremos mostrar, na prática, que somos melhores que eles, se vamos conseguir ou não, já não sei. O Flamengo tem duas equipas, o treinador olha para o banco e tem 11 do mesmo nível, o Palmeiras contratou dois ótimos jogadores, Paulinho e Vítor Roque, mais o Lucas Evangelista.
Palmeiras, de Abel Ferreira, recebe o Botafogo, de Renato Paiva, na primeira jornada. Calendário terá uma pausa de um mês entre as 12.ª e 13.ª jornadas devido ao Mundial de Clubes, que terá quatro clubes brasileiros: Flamengo, Fluminense, Palmeiras - adversário do FC Porto -, e Botafogo
- Lidar com John Textor, dono norte-americano do clube, está a ser difícil?
- Muito fácil. O John tem um percurso de vida extraordinário, é um visionário, com coisas de génio, mas acima de tudo acredita muito no trabalho e tem muita paixão pelo futebol. A minha entrevista com ele foi a discutir pressão e contrapressão, ataque e defesa. É muito afável mas exigente.
- E a estrutura da academia é suficiente?
- Condições fantásticas, a 15 minutos do Rio estás num contexto de descanso, de paz, a infraestrutura é ótima, a estrutura humana também, com gente muito competente em todos os departamentos, a área médica é extraordinária, de referência no Brasil, o scouting consegue montar equipas muito competitivas, às vezes com jogadores até desconhecidos, os diretores estão envolvidos mas não se intrometem. Porém, o que define o Botafogo é a palavra 'família', muitas pessoas estão aqui há muitos anos e transmitem-nos a mística. É um clube, em simultâneo, gigante e familiar.
- Passou por fase que os treinadores adoram: com semanas para treinar. Mas já vai entrar num ciclo 'à brasileira', de nove jogos num mês, viagens longas. A equipa está com fôlego?
- Não sei, fizemos 16 treinos, dois jogos-treino interessantes, estamos bem mas não a 100%. Há treinador novo sem mudanças radicais mas com conceitos próprios, estamos já a preparar o jogo com o Palmeiras do ponto de vista estratégico, mas é isso: depois do jogo é chegar ao Rio na mesma noite, no dia seguinte de manhã viajar para o Chile [para jogar com o Universidad para a Libertadores] e assim sucessivamente, com jogos de três em três dias. Dessa forma, temos de trabalhar muito com vídeos explicativos porque no campo é só a passo. O Brasil é um mestrado e doutoramento mas com a mão na massa, gestão de logística, gestão de cargas, gestão de grupo, tudo planeado ao milímetro, ao segundo, quanto tempo do aeroporto ao hotel, do hotel ao treino, a palavra-chave é planeamento.
- Cinco treinadores portugueses em 20 clubes: porque se adaptam tão bem?
A língua, o conhecimento prévio que temos do jogador brasileiro, o conhecimento do jogo do treinador português, que é dos melhores do mundo, a capacidade dos portugueses de se adaptarem e as portas abertas pelo Jorge Jesus, depois o Abel ainda as abriu mais, o Luís Castro fez um trabalho extraordinário que não acabou, depois o Artur foi campeão, há o Pedro Caixinha, o António Oliveira, um bocadinho disso tudo.