Sporting: a odisseia que os leões viveram a 25 de Abril de 1974
Jogadores nem sabiam o que era um golpe de Estado; regresso a Portugal após falharem final da Taça das Taças foi um filme; os relatos de Mário Lino, Carlos Pereira e Fernando Tomé
As voltas que a vida dá. Expressão tantas vezes ouvida e que se encaixa na perfeição no que foi uma verdadeira odisseia para a equipa do Sporting que, a 24 de abril de 1974, jogou a 2.ª mão de acesso à final da Taça das Taças, em casa do Magdeburgo, na então República Democrática Alemã (RDA).
Desportivamente falando, as coisas não correram de feição aos leões, que perderam, por 1-2 — após empate em Alvalade (1-1) —, num jogo em que Fernando Tomé, lançado aos 70 minutos, foi protagonista de falhanço clamoroso, à boca da baliza, a quatro minutos do apito final. «Os adeptos do Sporting recordam-se de mim pela pior razão, não marquei aquele golo e falhámos a final. Mas ninguém se lembra é que na primeira mão, em Alvalade, podíamos ter goleado. O Dinis falhou um penálti, acertámos três bolas nos postes e o Carlos Pereira fez um autogolo», realçou.
De malas feitas, das duas maneiras — afastados da final da Taça das Taças e de regresso a casa —, semblantes carregados, mal sabiam que a muitos quilómetros de distância o E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, e Grândola, Vila Morena, de José Afonso, passavam na rádio, estavam dadas as senhas para o arranque da Revolução.
«Estávamos no Muro de Berlim, a mostrar os passaportes para passar da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental, e estavam a passar notícias no autocarro, em alemão, o nosso guia disse que havia um golpe de Estado em Portugal, mas não ligámos nenhuma, até porque psicologicamente estávamos muito em baixo por causa da derrota, tínhamos perdido a meia-final e a oportunidade de jogar a final com o Milan. Depois fomos parados por um carro onde ia o presidente João Rocha que entrou no autocarro e disse o que se passava em Portugal», conta Carlos Pereira.
Mas, só em Espanha, é que começaram as preocupações: «Voámos de Frankfurt para Madrid e era aí que alguns funcionários da TAP diziam o que estava a acontecer em Portugal, mas da pior maneira, falavam em canhões, tiros, mortes, uma coisa em grande escala. Não havia telemóveis, estávamos preocupados. Depois seguimos de autocarro de Madrid para Badajoz, foi uma viagem horrível, estávamos numa ansiedade tremenda e quando chegámos à fronteira a Elvas estava tudo fechado. O presidente João Rocha moveu as suas influências, conseguiu chegar à fala com o general Spínola e deixaram-nos passar, com uma coluna imensa de carros em fila, chamaram-nos de tudo e mais alguma coisa», acrescenta.
«Deixei o carro na Baixa»
Passados 50 anos, Tomé tem bem frescos na memória os primeiros relatos do 25 de Abril: «Foram horas de aflição, não sabíamos o que era um golpe de Estado. Os jornalistas que estavam connosco é que nos explicaram, a partir daí aumentou a nossa preocupação. Em Frankfurt ouvia-se que na BBC estavam a dar notícias de Portugal e uns elementos da Vapores do Rêgo, claque brasileira de apoio ao Sporting da qual iam dois elementos connosco, disseram que havia relatos de milhares de mortos e centenas de milhares de feridos, e no meio disto há um elemento da comitiva que diz: ‘Epá e eu que deixei o carro na Baixa’, ainda nos rimos.»
Brincadeira de jornalistas
Mário Lino era o treinador. Vinha aziado, pois claro: «Em Alvalade digo, sem pudor, que podíamos ter goleado, mas o futebol tem as suas particularidades e não aconteceu. Criámos oportunidades, não as aproveitámos. Na ex-RDA fomos sempre superiores, mas, depois, falhámos na finalização e, infelizmente, não pusemos os pés na final.»
E continua a desfiar o novelo: «O nosso regresso foi um filme. Nas deslocações ao estrangeiro, os jornalistas iam sempre connosco e havia muito o hábito de pregar partidas, como por exemplo dizer que o Salazar tinha morrido, etc. Quando nos disseram que tinha havido um golpe de Estado em Portugal, sinceramente, pensei que fosse mais uma brincadeira dos jornalistas. Mas, felizmente deu-se a mudança política em Portugal. Voltar a Portugal foi uma verdadeira aventura, de avião até Madrid, depois de autocarro até Badajoz, até conseguirmos entrar por Elvas. Claro que estávamos muito preocupados com a família, felizmente não houve coisas de maior.»
Passaportes confiscados
Os passaportes tinham de ser devidamente carimbados quando as viagens eram para países de Leste e, no regresso a Portugal, os documentos eram confiscados pela PIDE/DGS para serem anulados. Este passaporte, no entanto, acabou por ficar na posse do proprietário, tendo em conta que quando o Sporting regressou a Portugal o regime da ditadura tinha entretanto caído.
Toureiro à boleia
As filas na fronteira de Elvas para entrar em Portugal eram, naquele dia 25 de Abril de 1974, a perder de vista. O autocarro do Sporting estacionou no início, a aguardar sinal verde para avançar. E depressa houve quem quisesse apanhar uma boleia. Mário Coelho, nascido em Vila Franca de Xira, considerado o melhor bandarilheiro do mundo, tinha feito uma corrida em Espanha e queria regressar a casa. Assim que o autocarro arrancou, o toureiro avançou com o seu carro e também conseguiu passar, não sem antes tirar uma fotografia (ver abaixo) com Alhinho, Valter Onofre, Chico Faria, Tomé e Carlos Pereira.
A BOLA contou tudo
Há 50 anos, Aurélio Márcio foi o jornalista enviado-especial que acompanhou o Sporting na viagem a Magdeburgo. Com edições trissemanárias, com o título ‘O tormentoso regresso do Sporting: A comer e a dormir aos poucochinhos’, foi feito o relato tim-tim por tim-tim, do que foram as peripécias da viagem de volta a Portugal, aconteceu apenas dois dias depois, a 27 de abril, já em regime de liberdade, sem lápis azul… No dia 25 de abril foi feita a reportagem do jogo e na edição de 27 de abril, Aurélio Márcio reportou toda a situação vivida pela comitiva leonina.
Belenenses quis tirar partido do cansaço... mas deu-se mal
Finda a odisseia que foi o regresso a Portugal após a eliminação nas meias-finais da Taça das Taças, o Sporting tinha pela frente novo desafio, a Taça de Portugal, frente ao Belenenses nos oitavos de final.
«A Direção do Sporting pediu o adiamento do jogo, face à complexa e desgastante viagem que tínhamos tido, mas o adversário não aceitou, quis tirar alguma espécie de proveito, estávamos de rastos, na viagem para lá puseram-nos num hotel o mais longe possível de Magdeburgo, as camas eram horríveis, não dormimos nada, a comida horrível era, mas ganhámos 2-1 e acabaríamos por conquistar o Taça de Portugal», relembra Carlos Pereira.
O brasileiro Dé bisou (8’ e 69’), Alhinho fez um autogolo (58’), com Carlos Pereira e Tomé a serem suplentes utilizados e Mário Lino a lembrar-se perfeitamente desse jogo: «Com o Belenenses tivemos de puxar pelo brio e acabaram por ser castigados com a derrota depois de terem recusado adiar o jogo.»
A importância do Sindicato de Jogadores
A 23 de fevereiro de 1972 foi constituído o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, com a primeira Direção a ser composta por Artur Jorge, Eusébio, António Simões, Fernando Peres, Rolando, Pedro Gomes e João Barnabé, cuja primeira ação foi a exigência do fim da lei da opção e respeito pelas garantias laborais dos jogadores. Após o 25 de Abril de 1974, coube a este órgão ajudar a federação a controlar as situações contratuais que estavam a fugir de controlo.
«Fiz parte da equipa que lançou o Sindicado, os clubes tinham os jogadores presos e conseguimos desbloquear a situação. O nosso advogado era o doutor Jorge Sampaio [Presidente da República entre 1996 e 2006], grande aliado nas nossas lutas. Conseguimos acabar com a lei da opção: se aparecia um clube X a querer o jogador Y, o clube onde jogava tinha direito a mantê-lo por menos 50% da transferência, ficava sempre ali, sem margem de manobra e conseguimos dar a volta à situação, foi um grande passo, depois conseguimo-nos integrar nos sindicatos de todo o mundo [FIFPro] e, atualmente, é um órgão sindical que faz muito pelos jogadores, porque nem todos têm as condições dos atletas que representam os grandes clubes de futebol», realçou Pedro Gomes.
Questionado sobre onde estava há 50 anos, a memória está bem fresca: «Foi o meu primeiro ano de treinador, no Oriental, recordo-me que no dia 25 de abril de 1974 não deixei o meu filho mais velho ir à escola e também não fomos treinar. É um dia que temos de celebrar sempre, para zelar-se pela liberdade.»