O plano de Inglaterra para conquistar o mundo
Harry Kane marca diante de Itália no jogo que determinou apuramento dos ingleses para o Euro-2024 (Foto: AFLOSPORT/IMAGO)
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O plano de Inglaterra para conquistar o mundo

INTERNACIONAL18.10.202321:30

Como federação e ligas se juntaram e deram a volta ao futebol da seleção em 12 anos; sucesso da Premier League potenciou trabalho da formação; Euro-2024 era uma das metas previstas para capitalizar as novas gerações, se possível, com títulos

Inglaterra garantiu esta terça-feira o apuramento para a fase final do Euro-2024 e, em terras germânicas, será, com toda a naturalidade, uma das mais fortes candidatas ao título. Há 15 anos, a seleção dos ‘três leões’ falhou o Campeonato da Europa de 2008 e, desde então, nunca mais nenhum inglês olhou para trás. 'It's coming home' mesmo, desta vez?

Todos os avanços começam com um problema ou um retrocesso. Se, em 2000, uma campeã europeia Alemanha, destroçada e afastada por um 'Portugal B’ na fase de grupos, e o coorganizador Bélgica, também humilhado e eliminado pela Turquia em Bruxelas ao terceiro encontro, sentem que é momento para a reinvenção do seu futebol, também Inglaterra, dez anos depois, acredita que é a altura de fazer o mesmo, na sequência da goleada sofrida nos ‘oitavos’ do Mundial diante de uma ‘Mannschaft’ já a dar alguns sinais de retoma (1-4) e de, dois anos antes, nem sequer ter marcado presença no Euro-2008.

Federação (FA), Premier League, Football League (responsável pelos campeonatos do segundo ao quarto escalão) e clubes unem esforços para alterar o estatuto da seleção inglesa nas competições internacionais, a apontar precisamente para duas competições: o Mundial de 2022 e o Europeu de 2024. Mais de uma década à frente.

Em 2011, é então criado o inovador Elite Player Performance Plan para começar a ser implementado na época 2012/13, a pensar na seleção, que não acompanha o crescimento da liga, fundada precisamente 20 anos antes e, também, a partir de uma ideia de bem-comum. Com inspiração no sucesso cooperativo interno, na revolução germânica e em vários outros projetos espalhados pelo planeta e estudados ao pormenor, trabalha-se com objetivos simples: profissionalizar a formação, a fim de aumentar a massa crítica em número e em qualidade ao dispor do selecionador, sobretudo numa altura em que há discrepâncias entre o trabalho feito nas camadas jovens na Velha Albion e em países como Alemanha, Espanha, França ou mesmo Portugal. Os jovens ingleses não só treinam pior, devido à existência de poucos técnicos credenciados, como também menos tempo.

A receção não é consensual, não só desde logo pela projeção de um escasso retorno financeiro pelos jogadores formados, mas também devido a preocupações com o excesso de competição face ao aparecimento de novas provas e possível ‘burnout’ de jogadores tão jovens. Apesar disso, o projeto entra em vigor em 2012-13 e investem-se desde então quase dois mil milhões de euros. Cerca de 4 por cento de cada transferência dos quatro primeiros escalões é desviado diretamente para o investimento na formação. Na altura, Gareth Southgate é o chefe de desenvolvimento da federação, antes de assumir, de 2013 a 2016, os sub-21 e, posteriormente e até hoje, a seleção principal.

Gareth Southgate acompanhou todo o processo de reconstrução do futebol inglês, desempenhando vários cargos (Jakob King/Imago)

A aplicação total do plano leva, idealmente, a que todos os clubes até à League 2 tenham academias, estratificadas em quatro categorias, de acordo, por exemplo, com as infraestruturas criadas, a capacidade de atração de talento, o número de treinadores nos quadros, as horas de treino e a tecnologia aplicada. Chega a atingir 90 por cento. E não há restrições: qualquer clube de qualquer divisão pode aspirar ao topo. A avaliação é anual, há subidas e descidas de patamar e estar no mais alto significa mais dinheiro recebido e também a participação em mais competições.

Quando o projeto arranca, são 20 as academias de nível A, a elite, tendo crescido o número para 25 antes do Mundial do Catar. São as mais completas. Para se candidatarem ao nível 2 e 3, os clubes têm de ter todos os escalões, desde os sub-9 até aos sub-21, com o nível 4 a exigir pelo menos a classe etária dos 17 aos 21 anos. 

Não há qualquer sentido de justiça ou de equilíbrio. A certo ponto, as maiores promessas serão formadas nas melhores academias, já que os grandes investidores têm direito a ainda mais dinheiro para reinvestir e, além disso, é-lhes facilitado o recrutamento nos menos cotados, enquanto o inverso não é possível. É exatamente o que acontece na Premier, em que os primeiros classificados são premiados com verbas superiores. A distância entre os mais fortes e os outros aumenta, porém o bem-maior não são os resultados e sim a equipa nacional.

Elite Player Performance Plan

O perfil do novo jogador inglês

O documento estabelece ainda, a partir de uma adenda de 2014, os parâmetros do que deve ser o futebolista inglês: bom na posse de bola, com técnica apurada e compreensão tática dos momentos do jogo. A ideia passa por responder a uma conclusão do próprio Southgate, que, ao fim de 57 internacionalizações, disse sentir que «a seleção inglesa era sempre inferior tecnicamente» às demais. Com o renascer alemão com um novo tipo de futebolista e o sucesso de Espanha em 2010, entendeu-se que o que estava na moda era também o caminho ideal para prosseguir.

Também os familiares e adeptos têm um capítulo que lhes é dedicado, em que se pede paciência por resultados que, avisa-se, não serão imediatos.

O número de técnicos ‘full time’ triplica – de 250 em 2012 para mais de 800 dez anos depois, com muitos deles a serem formados pelo próprio clube, o que faz de Inglaterrao país com mais treinadores a tempo inteiro dedicados às camadas jovens em todo o mundo – e as horas de trabalho aumentam exponencialmente. Os treinos passam a ser integrados num planeamento (anteriormente praticamente inexistente), que recorre ao apoio de dados estatísticos e de desempenho. Ao mesmo tempo, os jovens são monitorizados por um departamento de educação para que o desenvolvimento encontre paralelo fora dos relvados.

Reece James e Phil Foden em diferentes momentos das carreiras (Foto: composição site Premier League)

As melhores academias ficam também com porta aberta para competições mais exigentes. As de topo participam na Premier League Cup, na Premier League 2, na Premier League International, na FA Youth Cup, na UEFA Youth League e no EFL Trophy. Neste último, jovens dos 18 aos 21 anos têm pela frente seniores de emblemas da League One e Two.

Crescimento sustentado e opções disparam para Southgate

Os profissionais saídos da formação disparam, não só para a Premier League, mas também para as outras ‘Big Five’, onde inicialmente até lhes era garantido mais espaço. É o caso de nomes como Jadon Sancho, por exemplo, que teve de se afirmar no Dortmund antes de assinar pelo Manchester United. Contudo, com o passar do tempo, mais jovens começam a acumular minutos no escalão principal, onde passam a defrontar os melhores jogadores britânicos e os estrangeiros mais talentosos que o dinheiro pode comprar. São ainda treinados por alguns dos técnicos mais progressistas, como Pep Guardiola e Jurgen Klopp, entre tantos outros. 

Em 2014, traça-se o objetivo de ter, oito anos depois, 90 jogadores selecionáveis por Inglaterra a jogar regularmente na Premier ou numa outra das 'Big Five', porém antes do Mundial no Médio Oriente o número já é 102.

No Catar, 12 dos 26 convocados, entre os quais Jude Bellingham, Marcus Rashford, Phil Foden, Bukayo Saka, Trent Alexander-Arnold e Declan Rice, vêm do sistema, e há mais 19 espalhados por outras seleções. Os títulos também começam a aparecer: nos sub-17, os ingleses são campeões europeus em 2014 e mundiais em 2017; nos sub-19 campeões europeus em 2017 e 2022; e nos sub-20 campeões mundiais em 2017. Nos AA, atinge-se as meias-finais no Rússia’2018, a final do Euro’2020 em casa e os quartos em 2022, no Médio Oriente.

Com o sucesso, chegam outro tipo de críticas. Inglaterra, diz-se e escreve-se, produz 'futebolistas iguais', adequados para a Premier League, mas incapazes de ter sucesso nos mais embrutecidos escalões secundários. É impossível agradar a todos.

Brentford conquista Premier League Cup com a sua equipa B (Foto: Premier League)

Brentford recusa gastar 2,9 milhões e fecha academia (para agora reabrir)

O Brentford era, até ao início da temporada, o único emblema da Premier sem academia. Incapaz de reter talento juvenil, tal como os outros clubes mais modestos, perante o assédio dos mais poderosos, decidiu há sete anos cerrar portas e apostar numa equipa B. Os custos eram de 2,9 milhões de euros por ano.

Na altura, ainda no Champioship, os ‘Bees’ não consideram o modelo rentável, uma vez que perdem as maiores promessas a troco de quantias irrisórias ou mesmo sem qualquer contrapartida – em 2022, foi necessário aumentar a taxa compensatória pela formação em cerca de 70 por cento para, de certa forma, diminuir o descontentamento, ainda que, não se aproximando do valor 'normal' de uma transferência, saiba sempre a pouco.

A ‘B’ passa então a contemplar jogadores entre os 17 e 21 anos, também recrutados com o apoio da ‘big data’, que sirvam de ‘backup’ ao plantel sénior. Claro que ao abandonarem o sistema, deixam de poder participar nas competições oficiais ou de ter um estádio próprio além da infraestrutura principal, na qual os seniores têm prioridade. Andam com a casa às costas, jogando amigáveis um pouco por todo o país, onde haja campos disponíveis, ou em torneios no estrangeiro. Na época passada, participam, como convidados, na Premier League Cup e acabam a vencer o Blackburn, na final, por 2-1.

Esta época, face à obrigatoriedade imposta pela Premier League de que todos os clubes tenham uma academia, cria uma nível 4, preparando o terreno para subir de patamar o mais breve possível, com a introdução de mais escalões etários e melhoramentos nas infraestruturas e recursos. É nessa condição que defende o título na competição, missão que, no entanto, não se afigura nada fácil. O Brentford soma um empate e uma derrota em dois jogos, e segue atrás, no seu grupo, de Fulham e Burnley, ambos com academias de categoria 1.