O milagre do futebol na vida de Kyryl

A BOLA NO EURO O milagre do futebol na vida de Kyryl

INTERNACIONAL29.06.202411:30

Criança ucraniana pintou um jogo imaginário na parede do abrigo para se distrair dos bombardeamentos russos; federação convidou-o a assistir à partida com a Bélgica; A BOLA foi ouvir a sua história

O alvoroço no lobby é grande. Faltam cinco horas para o jogo decisivo frente à Bélgica que pode garantir a passagem da Ucrânia aos oitavos de final do Euro 2024. Há muitas camisolas amarelas à porta do hotel da seleção, no centro de Estugarda, que os seguranças controlam de uma forma defensiva, apenas na base da observação. Há câmaras por todo o lado.

Trubin e os restantes colegas já almoçaram. São 13 horas, o tempo é de descanso pós-refeição para os jogadores. Mas não para o staff, cujos elementos andam de um lado para o outro para satisfazer as muitas exigências do momento: bilhetes para os convidados,  detalhes logísticos coordenados com a UEFA e acertos finais com as forças policiais.

Kyryl Vidkovskyi com Andriy Shevchenko, presidente da federação de futebol ucraniana, que o quis conhecer devido à história inspiradora baseada num desenho feito num abrigo (Fotos: D. R.)

Junto a um piano onde alguém toca uns acordes de Fur Elise de Beethoven estão sentados mãe e filho com uma história para contar. Uma história que já tem mais de dois anos mas que só foi agora descoberta na Alemanha, em pleno Europeu. Kseniia Vidkovska e Kyryl Vidkovska vivem no país há dois anos, perto de Bielefeld, pouco mais de 20 quilómetros de Marienfeld, o quartel-general de Portugal.

Kyryl interrompeu a entrevista a A BOLA para ir tirar uma foto e conhecer Shevchenko (Foto: D. R.)

«Soubemos desta história apenas há 10 dias e por isso fizemos questão de os convidar para este jogo», conta-nos Olena, uma das assessoras da Federação Ucraniana de Futebol, nos intervalos do vai e vem sobre os tapetes bem tratados da unidade hoteleira de cinco estrelas. A BOLA está lá para registá-la.

O que eles têm para contar é uma narrativa trágica que já ouvimos em mais de dois anos de guerra com a Rússia, mas com a particularidade de envolver o imaginário do futebol e por isso mesmo merecer o estatuto de adepto especial. «O meu filho costumava jogar no Snad, o clube local da região de Chernihiv, onde nós vivíamos, e o pai dele conhece pessoas de academias de futebol. O sonho dele ver a Ucrânia jogar ao vivo», explica Kseniia. Kyryl, de 13 anos, vestido a rigor, não esconde a ansiedade e alguma timidez, mas quando segura o microfone usa uma voz segura. 

Vamos ao contexto: a família tinha uma vida normal na zona de Chernihiv, no norte da Ucrânia, perto da fronteira com a Bielorrússia, até que se deu o início da ocupação, a 24 de fevereiro de 2022. A proximidade com o vizinho e aliado do regime de Vladimir Putin fez desta região uma das mais fustigadas no início da guerra por causa da facilidade de deslocação das tropas inimigas em território bielorrusso sem possibilidade de contra-ofensiva local. De um dia para noite deram-se os bombardeamentos e depois a entrada das tropas. Foram 28 dias sob jugo inimigo até chegarem as tropas ucranianas.

«Os russos entraram pela nossa região vindas da Bielorrússia, em marcha, e colocaram-nos em cativeiro durante 28 dias. Antes disso fomos bombardeados e tivemos de nos esconder nos abrigos subterrâneos porque as bombas eram muito fortes. Depois, quando chegaram as tropas russas obrigaram-nos a sair das nossas casas e destruíram tudo, todas as comunicações, qualquer forma de comunicarmos com o mundo exterior. Então pegaram em toda a gente da cidade e colocaram-nos numa escola, mantendo-nos em cativeiro num único local», revela Kseniia Vidkovska. Dois anos ainda é muito pouco, a memória está fresca e o trauma é denunciado pela expressão facial carregada.

Os olhos desta mãe também falam. Têm uma profundeza tão grande que parecem fazer-nos transportar ao passado. Como nos flashback nos filmes. «Nós fomos dos primeiros a ser conduzidos para a escola porque a nossa casa foi das primeiras que encontraram, no início da rua. Durante 28 dias vivemos na escola sem água, eletricidade, comida, enquanto os russos viviam nas nossas casas e pilhavam tudo: dinheiro, televisões, roupa, joias, tudo o que havia para roubar.»

Davam-nos comida estragada: sopa com gasóleo, pão com terra... davam pão com terra a crianças!

«Se quisermos ver jogos da seleção na rua  podemos ser bombardeados com um drone»

29 junho 2024, 10:30

«Se quisermos ver jogos da seleção na rua podemos ser bombardeados com um drone»

São duas vítimas diretas da guerra. Perderam membros inferiores mas tentam seguir com as suas vidas. Um deles joga na seleção nacional de futsal adaptado e é fã de Ricardinho. Fizeram uma viagem de 30 horas de autocarro desde Kiev para assistir a dois jogos da seleção da Ucrânia. A BOLA falou com eles antes da partida com a Bélgica.

A sobrevivência só foi possível graças ao esforço comunitário. O marido improvisou uma cozinha e, com a permissão do inimigo, ia confecionando o possível com a comida que toda a gente aprisionada trouxera de casa. «Arroz, massa... íamos cozinhando e partilhando a comida», recorda.

Os russos também forneceram alimentos, mas incomestíveis. «Davam-nos comida estragada: sopa com gasóleo, pão com terra... davam pão com terra a crianças!»,  diz, revoltada. Mais tarde, o intérprete fala-nos de uma entrevista a que assistira na véspera de alguns dos 19 soldados ucranianos libertados do cativeiro russo. Homens com 40 a 50 quilos que eram obrigados a comer num minuto uma tigela com água a ferver e uma batata lá dentro, a fingir de sopa. E outro que diz ter sido forçado a comer um rato, caso contrário morreria à fome.

O jogo que acaba 10-0

A conversa é entretanto interrompida. Ksennia e Kyryl são convidados a subir as escadas, entrar numa sala e conhecer Andriy Schevchenko, presidente da Federação Ucraniana de Futebol. O encontro não dura mais de três minutos. O rapaz regressa com um sorriso que ainda não tínhamos visto. Traz um saco recheado de prendas da seleção e uma bola assinada por todos os jogadores. Ele nunca viu jogar Sheva, mas sabe que acabara de estar com um deus do futebol do país, cujas fotos a mãe guardará no telemóvel e na cloud.

O desenho feito a carvão na parede de um abrigo onde estavam 40 pessoas a viver (Foto: D. R.)

Pedimos-lhe então para voltar atrás e explicar a origem de uns rabiscos que tornaram famosos e cujo significado tocou fundo na comitiva ucraniana. Durante o tempo em que esteve no abrigo subterrâneo, durante a fase de bombardeamentos, a única forma de se distrair era através dos desenhos que fazia nas paredes. Um deles foi de um jogo de futebol imaginário, feito com material outrora usado para gravar o horror.

«Fiz os desenhos quando estava no abrigo. Encontrei um pedaço de carvão que era usado pelos russos para escrever nas paredes o nome das pessoas ucranianas que eles mataram. Muitos ucranianos foram mortos na nossa vila, a maioria homens. Encontrei o carvão e comecei a pintar para não pensar nas pessoas que tinham morrido», lembra. A mãe mostra-nos a foto e o vídeo do abrigo já depois da chegada das tropas ucranianas, já com a eletricidade restituída. Mas tal não havia nesses dias de terror num espaço exíguo onde viveram 40 pessoas.

«Cerca de meio metro quadrado por pessoa. O meu filho via os nomes das pessoas que tinham morrido, a maioria a tiro», diz Ksennia, exibindo outra foto, esta do portão do abrigo, onde está escrito ao aviso ‘Atenção, crianças’. Uma maneira de apelar a alguma réstia de clemência ao inimigo.

Kyryl com a bola assinada por todos os jogadores da seleção ucraniana

Ainda assim Kyryl muda ligeiramente o tom quando lhe perguntamos que tipo de imagens idealizou enquanto borrava as paredes com um retângulo de jogo: uma jogada ofensiva, duas equipas em disputa, jogadas individuais ou qualquer outra dinâmica mental que só as crianças são capazes de fazer na forma mais primitiva, sem recurso a qualquer tecnologia. Sorri ligeiramente. Tem tudo gravado. «Imaginava duas equipas a jogar uma contra a outra, o Dínamo Kiev contra o Snad, a minha equipa local, e o Dínamo Kiev ganhava por 10-0.» A descrição faz os ucranianos à volta rirem-se, surpreendidos pelo detalhe e o desnível no marcador. Kyryl abre mais o sorriso ao notar que de repente o ambiente fica mais descontraído. Tudo por causa de um jogo de futebol imaginário, esse desporto capaz do milagre parar guerras ou fazer esquecer, nem que seja por momentos, os traumas mais profundos.

De seguida a família Vidkovska irá para o Arena Estugarda, onde assistirá ao empate a zero, resultado que afasta a seleção dirigida por Sergiy Rebrov dos oitavos de final do Euro 2024, apesar da luta dos ucranianos até ao fim, tentando contrariar o favoritismo da Bélgica, metáfora da atitude dos soldados no seu país. Nos ecrãs gigantes, a UEFA exige a palavra paz, tal como o faz em todos os jogos da prova. Apesar do desfecho, Kyryl certamente voltou a sorrir por presenciar ao vivo um quadro a cores, muito diferente daquele jogo imaginado numa parede branca de um esconso abrigo.