O craque do desconfinamento (artigo de José Manuel Delgado)

CRÓNICAS DE UM MUNDO NOVO O craque do desconfinamento (artigo de José Manuel Delgado)

NACIONAL23.05.202016:01

Já tive a oportunidade de alertar, em crónicas anteriores, para a possibilidade do futebol à porta fechada trazer surpresas em relação ao rendimento dos jogadores. Na última página da edição impressa de hoje de A BOLA, Jorge Valdano leva-nos a uma curiosa viagem pela forma como os futebolistas podem motivar-se neste novo contexto, e revela, com muita perspicácia, que a luta interna de cada um, ao longo dos 90 minutos, será muito maior do que o normal para se manter em níveis elevados de concentração.
 

Vamos ter, pois, três tipos de jogadores, neste futebol do nosso desconfinamento (como diria, do alto da sua enorme sabedoria, Vítor Serpa…), a que deveremos estar particularmente atentos.
 

Há aqueles que, com público ou sem público, jogam com o mesmo rendimento (e sou capaz de dar o exemplo do Nené, igual em jogos, treinos, com muito ou pouco público, contra o Liverpool ou contra o Alcobaça); outros, que sentem e se ressentem da falta do estímulo exterior (e Carlos Manuel, que tantas vezes se transcendia devido ao calor do público, pode servir para exemplificar o que quero dizer); e finalmente uma terceira espécie, que sem a pressão dos adeptos é capaz de revelar-se em todo o seu esplendor (o melhor exemplo que recordo de alguém assim é o de um antigo extremo-direito do Belenenses, Carneirinho* – 25 jogos e nenhum golo - que nos treinos era melhor do que Mané Garrincha e nos jogos nunca foi capaz de mostrar um décimo do que sabia, muito provavelmente por não superar o medo cénico.) 
 

Aqui chegado, é tempo de vos apresentar o grande craque do desconfinamento, um jogador que brilha como Maradona ou Messi e marca como Ronaldo, livre como um pássaro nestas novas gaiolas sem público do novo normal. Tem 20 anos, é brasileiro, começou a jogar no Coritiba e ainda com 16 anos transferiu-se para o Sion, de onde transitou para o RB Leipzig, tendo assinado, no último dia da janela de inverno de 2020, pelo Hertha de Berlin. Chama-se Matheus Cunha, já tinha dado nas vistas com um golo-maravilha pelo Leipzig que lhe valeu a candidatura ao prémio Puskas de 2019, e quem tiver dúvidas do que estou a dizer basta ir a https://www.youtube.com/watch?v=vyXoiDMKVsM e perceber como é que ele se soltou, a ponto de, nos dois jogos do Hertha desconfinado, ter faturado nas vitórias contra o Hoffenheim e o Union Berlin, além de ter assinado exibições de grande eficácia e elevadíssima nota artística.
 

Continuo plenamente convencido que este novo contexto vai ser rico em surpresas, jogadores-revelação e jogadores-deceção, e muitos sentimentos mistos, de resultados imprevisíveis, por causa das bancadas vazias. Para já vamos vendo como é na Alemanha; não tarda e – apesar da areia que alguns ainda persistem em atirar para uma engrenagem que tanto custou a montar – teremos a I Liga de volta, para podermos passar da teoria à prática.
 

* Carneirinho, carioca de gema, tem agora 62 anos e depois do Belenenses acabou por fazer carreira em Hong Kong. Era um brinca-na-areia em estado puro e a sua irreverência dava cabo da paciência aos treinadores. Um dia (15 de janeiro de 1978) frio, chuvoso e batido a vento forte, que soprava do mar, a poucas dezenas de metros do relvado, num Varzim-Belenenses para a I Liga, o treinador dos azuis, António Medeiros, colocou-o a titular e pediu-lhe para, a partir da direita, agitar o jogo em diagonais para a zona do ponta-de-lança e não se esquecer de acompanhar o lateral esquerdo dos poveiros, sempre que ele subisse no terreno. Começou o jogo e cedo se percebeu que o Carneirinho não saía do mesmo sítio, nem para trás, nem para a frente e Medeiros começou, como dizia, «a ficar em brasolina.» Com aquele estilo gingão e bigode à Charles Bronson, o ‘Tó de Leça’, como era conhecido António Medeiros no ‘millieu’, gritou e barafustou até que, depois de meia hora de suplício, chamou Carneirinho ao banco e perguntou-lhe o que se passava. A resposta do Carneirinho teve entrada direta para o ‘top’ do folclore do futebol português: «Correr mister? Puxa vida, aqui até pinguim bota casaco!»
 

Moral da história? Carneirinho foi logo substituído e António Medeiros (grande treinador, que percebia mais de futebol a dormir do que os teóricos da moda algum dia hão de perceber, acordados…) ficou com mais uma grande história para contar. E que contador de histórias era o enorme ‘Tó de Leça’…