Hamburgo: uma cidade, dois clubes rivais na segunda divisão e um jogo de Champions para animar
Hamburger SV - FC St. Pauli
Foto: IMAGO

Hamburgo: uma cidade, dois clubes rivais na segunda divisão e um jogo de Champions para animar

INTERNACIONAL18.09.202309:00

Afastado de casa pela guerra, o Shakhtar Donetsk ‘recebe’ o FC Porto na cidade alemã. O jogo vai ser disputado no estádio do Hamburgo SV, um outrora campeão europeu que luta por voltar à ribalta enquanto vive dérbis intensos com o FC St. Pauli

Não é propriamente novidade que dois clubes da mesma cidade não simpatizem lá muito um com o outro. É o que acontece com o Hamburgo SV e o FC St. Pauli, mas esta rivalidade alemã vai muito além das cores e dos títulos. De um lado mais azul, do outro um pouco de vermelho; de um lado o palmarés, do outro um estilo de vida. É neste ambiente futebolístico – e não só – que entra o Shakhtar Donetsk e a sua admirável insistência em manter-se nos grandes palcos europeus, mesmo com uma guerra a decorrer em casa.

Quando o hino da Liga dos Campeões se ouvir no Volksparkstadion, esta terça-feira à noite, nas bancadas poderão estar, além de portugueses e ucranianos, adeptos dos dois clubes de Hamburgo que neste momento se encontram na Bundesliga 2, mas com histórias muito diferentes para contar.

HSV: tic-tac, tic-tac…

Os adeptos do principal clube de Hamburgo andam a contar as horas para voltar à ribalta desde aquele fatídico dia 12 de maio de 2018, quando o até então único totalista da Bundesliga, com 55 anos de presenças consecutivas desde 1963, desceu à segunda divisão alemã. Para um clube que já foi campeão europeu, é de imaginar o choque na altura e a ansiedade de agora.

Com três Bundesliga e uma Taça dos Campeões Europeus (em 1982/83, contra a Juventus de Trapattoni, os alemães ganharam por 1-0, com golo de Felix Magath. E em 1979/80 já tinham chegado à final, mas perderam com o Nottingham Forest de Brian Clough) no palmarés, além de um jogador Bola de Ouro (Kevin Keegan), é natural que se sintam superiores em Hamburgo e que queiram acreditar que o regresso à primeira divisão está próximo.

Há cinco anos que o HSV anda a ‘cheirar’ essa subida: tem alternado entre terceiros e quartos lugares na Bundesliga 2, com derrotas quase inexplicáveis para os adeptos nos últimos jogos da temporada a impedirem a subida. A vontade é tanta que já chegaram mesmo a festejá-la: em maio, após vencerem em casa do Sandhausen por 1-0, e sabendo que a outra equipa na luta estava a perder por 2-1 no final dos 90 minutos, invadiram o campo e começaram a celebrar. Pequeno pormenor: o Heidenheim acabou por fazer a reviravolta contra o Jahn Regensburg e foram estes a subir.

É por estas e por outras que os adeptos do HSV continuam à espera do tempo certo para o regresso. Para o contar, já não têm a ajuda do famoso relógio que se encontrava no Volksparkstadion e que marcava os 54 anos, 261 dias, 0 horas, 36 minutos e 6 segundos que esta equipa esteve na Bundesliga. 

Relógio que marcava a permanência do HSV na Bundesliga

O relógio parou a 12 de maio de 2018, mas, na primeira época na Bundesliga 2, manteve-se na bancada, a marcar o tempo desde a fundação do clube. Um ano depois, a crença num regresso imediato ao principal escalão saiu gorada e o então presidente Bernd Hoffmann decidiu desmontá-lo de vez. Agora, há uma placa com as coordenadas do estádio. Seria muito azar se até isso mudasse entretanto. 

Coordenadas do Volksparkstadion

O HSV lidera, juntamente com o Fortuna Düsseldorf, a tabela da Bundesliga 2, com a ajuda do guarda-redes lusodescendente Daniel Heuer Fernandes, de 30 anos, com toda a carreira passada na Alemanha, e o defesa-central Guilherme Ramos, de 26 anos, formado no Sporting e que deixou há três épocas o Feirense para se aventurar em terras alemãs.

St. Pauli: um clube de causas

«O FC St-Pauli transmite um modo de vida e é um símbolo de autenticidade desportiva. Isto permite que as pessoas se identifiquem com o clube, independentemente de qualquer sucesso que este possa alcançar em campo». Esta é apenas uma das alíneas do guia de princípios deste clube, o primeiro a ter este conjunto de intenções na Alemanha, e provavelmente o único a assumir que há causas que se sobrepõem aos resultados.

Antirracista, defensor dos direitos LGBT, com ideais de esquerda e uma ligação histórica à classe trabalhadora de Hamburgo, o St. Pauli floresceu, nos anos 80, como resposta ao crescente hooliganismo de extrema-direita na Alemanha em geral, e nos rivais do HSV em particular. «Tolerância» e «respeito» são palavras que se encontram no tal guia de princípios, mas também nas bancadas do Millerntor-Stadion, o estádio que convive de perto com a famosa Reeperbahn e o red light district da cidade.

A caveira que se tornou símbolo do clube – e um sucesso de merchandising um pouco por todo o mundo, já que este posicionamento permitiu ao St. Pauli conquistar adeptos de esquerda de vários países – serve para transmitir uma mensagem quase sempre presente: a do pobre contra o rico, a do clube que por apenas 8 vezes chegou à Bundesliga mas que luta por valores mais altos do que a posição na tabela.

Desde 2011 que o St. Pauli está afastado da primeira divisão alemã, e a melhor época de sempre foi a de 1988/89, quando terminou em 10.º lugar na Bundesliga. Mas o Millerntor-Stadion, com uma lotação para quase 30 mil pessoas, tem as bancadas repletas. À porta, está hasteada uma bandeira arco-íris. Aqui podem entrar todos, mas não há lugar para a homofobia.

Bandeira LGBT no Millerntor-Stadion

O St. Pauli está atualmente em 6.º lugar na Bundesliga 2, mas prefere ostentar outro tipo de títulos: foi o primeiro clube alemão a banir qualquer manifestação nazi no seu estádio e, em 2019, os adeptos conseguiram até que o jogador Cenk Sahin fosse despedido por ter apoiado publicamente o ataque da Turquia aos curdos na Síria. Nesta zona de Hamburgo, futebol e política continuam de mãos dadas.

O dérbi de Hamburgo

Com perfis tão diferentes, muitas vezes até opostos, não surpreenderá ninguém que o dérbi de Hamburgo seja, normalmente, muito ‘quentinho’. Com os dois clubes na Bundesliga 2, os encontros são agora mais frequentes (o próximo está marcado para o início de dezembro, na jornada 15), tal como as notícias de confrontos entre adeptos das duas equipas. Nas bancadas, as vozes do HSV cantam coisas como «Seis vezes campeões alemães [antes da Bundesliga, já tinham ganho outros três campeonatos], quatro vezes vencedores de Taças, sempre na primeira divisão, HSV!» A letra ficou desatualizada com a descida para a segunda, mas a provocação está lá. 

Nos dias que antecedem os dérbis, a cidade fica um pouco mais perigosa. Já houve bonecos de palha com as cores do St. Pauli enforcados em pontes e a polícia alemã tem muito trabalho para evitar cenas de pancadaria. A rivalidade é levada para lá dos limites, e vem muito de lá de trás no tempo. Quando a Bundesliga arrancou, em 1963, por exemplo, só permitiu que um clube de cada cidade participasse. Foi para o «rico» Hamburgo SV, e o fosso para o «pobre» FC St. Pauli cada vez se foi cavando mais. 

Seria de pensar que, neste ambiente, nunca um adepto de um dos clubes desta cidade trocaria para o outro. Mas foi o caso do autor e jornalista Jörg Marwedel, que, em 2018, em entrevista ao Deutche Welle, contava como começou a apoiar o St. Pauli: «Dizem que nunca se muda de clube, mas em Hamburgo, nos anos 80, era diferente. Cresci como adepto do HSV, mas a situação com os neonazis foi demais para mim – e não fui o único». Em Hamburgo, isto é mesmo mais do que futebol.