Entrevista A BOLA «Flamengo lutaria pelo título em Portugal e o Benfica faria o mesmo no Brasil»
José Boto compara a realidade dos dois países e de dois clubes especiais: o que o lançou para a ribalta e um gigante onde espera viver o «melhor momento da carreira»
Chegou há mês e meio para dirigir o futebol profissional do Flamengo, o clube com mais adeptos no Brasil. Antigo diretor do scouting do Benfica, revela em entrevista a A BOLA os motivos de ter aceitado o convite e compara as realidades dos dois países. Tem ainda a esperança de ajudar a recuperar a criatividade do jogador brasileiro que se perde em nome de uma «ideia falsa».
- Que balanço faz destes primeiros tempos no Flamengo?
- É um balanço super positivo. Disputámos duas competições e ganhámos. Os estaduais são uma pré-temporada, mas deu dá tranquilidade e a qualidade de futebol que estamos a apresentar, que é realmente de alto nível, e se calhar pouco visto aqui no Brasil, é algo muito positivo.
- Quais são as impressões a nível cultural, desportivo, condições de trabalho?
- Temos condições de nível Benfica, Sporting, FC Porto. O clube possui um centro de treinos que nada fica a dever nada aos melhores europeus. Temos um hotel dentro do centro de treinos, em que cada jogador tem um quarto para descansar, para se concentrar, toda a parte de fisioterapia e médica também, tudo não fica a dever nada ao melhor que há na Europa, em termos de condições físicas. Depois, em termos de condições humanas também, foi uma surpresa para mim, principalmente, sendo este um grupo que já ganhou tudo, a forma como eles se predispõem para o trabalho, foi uma agradável surpresa para mim. Nas questões culturais, por exemplo, a forma como a imprensa interage aqui com o clube, é algo que não é muito normal na Europa.
- Como assim?
- Eles aqui fazem perguntas que, por exemplo, vocês não fazem. Não usam filtro, é uma coisa mesmo muito direta. ‘Então, mas que jogador é que vai buscar?’ ‘O que é que falta para fechar?', coisas assim. É um elogio aos jornalistas na Europa, são mais subtis na forma de retirar a informação. Mas o Flamengo é um clube com uma dimensão... é um Benfica multiplicado por 40. Tudo o que se passa no Flamengo tem uma repercussão enorme, que também é algo que qualquer um de nós na Europa não está habituado. Vamos jogar jogos do estadual, Brasília, e são centenas e centenas de pessoas à espera do autocarro no aeroporto, depois mais centenas e centenas de pessoas à espera do autocarro no hotel. Quando jogámos a Supercopa em Belém, houve pessoas que não saíram, não arredaram o pé da porta do hotel, durante horas e horas e horas, na esperança de ver um jogador ou um contacto com o treinador. É um poder popular enorme, mas que depois também tem a outra face da moeda: quando as coisas não correm bem, o que felizmente até agora ainda não aconteceu.
- Foi isso que o levou a aceitar ir ou foi algo mais?
- Sempre fui um apaixonado pelo futebol brasileiro, e depois dos meus quatro anos de Shakhtar sempre achei que poderia agregar alguma coisa ao futebol brasileiro, que tem coisas muito boas, mas tem outras que ainda não estão ao nível daquilo que nós fazemos na Europa. Quando surge o convite de um clube como o Flamengo tu nem discutes os valores do contrato. Além do projeto que me foi apresentado, que é um projeto sólido, um projeto de consolidação de uma profissionalização do clube em todas as áreas.
- Falou das diferenças que existem com o padrão europeu. No que já se adaptou e o que é que também já implementou da sua experiência na Europa?
- Eu tenho essa experiência, até por conhecer diferentes realidades, mesmo dentro da Europa. A Ucrânia não é a mesma coisa que a Grécia, ou a Grécia não é a mesma coisa que Portugal, e nós temos sempre também de nos adaptar a coisas que são culturais, e que mudar essas coisas cria mais problemas do que soluções. Em termos daquilo que eu acho que já acrescentei, que era algo que já tinha sido feito por Jorge Jesus e se perdeu um pouco durante este período, é que o futebol é para as pessoas do futebol. O futebol é para as pessoas do futebol, aqui dentro do centro de treinos só entram pessoas que realmente são necessárias de estarem aqui, não há aqui mais ninguém, e isso era algo que aconteceu com Jesus, mas que se perdeu nesse período até à minha chegada.
- Eram convidados a mais...
- A parte estatutária do clube também é muito diferente do que é em Portugal ou na Europa. O clube tem muitos vice-presidentes, muitos diretores, e toda a gente, como é óbvio, o futebol é aquilo que move as pessoas. Por exemplo, diziam que era comum, durante o intervalo dos jogos, aparecer vice-presidentes que nada tinham a ver com o futebol, estarem ali também envolvidos naquela dinâmica do intervalo, ou do jogo, ou do antes do jogo… Viajavam 30, 40 pessoas com a equipa que nada tinham a ver com a equipa, porque depois é o primo, o filho, a família, toda a gente ia ali... E pronto, essas foram medidas que foram implementadas logo desde o início. Tenho o apoio do presidente para tomar essas decisões, mas existem outras coisas que se calhar não vale a pena mexer, ou que se calhar do ponto de vista cultural é normal para eles e para nós não é. Vou falar por exemplo do tipo de comida... Eu acho que às vezes há algum tipo de comida no pré-jogo que não é normal ter na Europa, mas aqui é normal. Mas se tu retirares aquilo terás mais problemas do que ganhos, não é?
- Aqui o feijão com arroz se calhar não seria permitido e aí...
- Exatamente, aqui o feijão com arroz é diário. Na Europa, se colocasse feijão com arroz num pré-jogo, ninguém comeria, nem ninguém se lembraria de colocar isso no menu. Mas há aqui uma coisa também muito boa, que é, eu tenho uma boa interação com o Filipe Luís, que me explica também essa parte cultural, não é? Ele que teve a sua carreira quase toda na Europa, e depois também aquilo que é cultural e que se calhar não vale a pena mexermos.
- O seu grande objetivo é mudar essa forma de trabalhar e implementar também mudanças na formação do clube. Isso é tão importante como ganhar o campeonato?
- É mais importante ganhar o campeonato. Porque se não ganhar o campeonato a outra parte não se consegue fazer. A dimensão do Flamengo não te permite falar em projetos de longo prazo. As coisas têm que ser construídas em paralelo. A minha primeira medida era não estragar o que estava bem feito e depois identificar algumas coisas que poderiam ser mudadas sem grandes revoluções. Porque são esses objetivos que nos vão permitir depois fazer outro tipo de mudanças mais abaixo. Essas mudanças já estão a acontecer na formação, ainda não da forma como eu quero, mas por culpa minha, porque com o mercado de transferências aberto, com a sucessão de jogos, ainda não consegui ter o tempo que eu preciso para estruturar melhor a formação.
- Quando chegou ao clube disse que a formação do Flamengo devia voltar às origens do futebol brasileiro. Pode explicar melhor essa ideia?
- Sim. Antes, os europeus iam buscar ao Brasil jogadores talentosos, técnicos, com capacidade de desequilíbrio. Nunca fomos atrás de atletas apenas fortes fisicamente ou taticamente evoluídos. O que aconteceu foi que, ao longo do tempo, criou-se a ideia de que o futebol europeu queria jogadores mais físicos e táticos. Com isso, muitos clubes brasileiros começaram a formar atletas com esse perfil e perderam um pouco a essência do jogador brasileiro. Isso é um grande erro. Se os clubes europeus quisessem apenas jogadores físicos e intensos, poderiam encontrá-los na Noruega, muito mais baratos do que no Brasil. O diferencial sempre foi o talento e a criatividade do futebol brasileiro, mas essa essência do futebol brasileiro tem vindo a perder-se. Esse processo teve um impacto nas seleções jovens e, talvez, até na principal. Se olharmos para gerações anteriores, como as de 1999, 2001 e 2002, havia muito mais talento evidente. Eu mesmo busquei jogadores dessa safra para o Shakhtar, como Vinícius Júnior e Rodrygo. Hoje, olhamos para os mesmos escalões e não vemos a mesma quantidade de talentos diferenciados.
- A ideia é resgatar isso no Flamengo?
- Sim, queremos mudar o perfil dos jogadores que buscamos. O modelo que estamos implementando, que felizmente é o mesmo que o Filipe Luís acredita, exige um tipo diferente de jogador do que vinha sendo formado na formação. Então, estamos a ajustar esse perfil nos escalões mais baixos.
- O seu contrato é de dois anos. Os objetivos principais passam por implementar essa nova metodologia de formação e scouting e ser campeão, portanto…
- Coisa pouca [risos]. O principal objetivo é criar uma estrutura profissional, onde as decisões do futebol sejam tomadas por profissionais. Em muitos clubes do Brasil, quem toma as decisões é um vice-presidente estatutário, que não sai mesmo se as coisas não funcionarem. No modelo que estamos trazendo para o Flamengo, o responsável pelo futebol é um profissional. Se não tiver sucesso, ele sai, como acontece em qualquer outro mercado. Essa mudança é quase única no Brasil. No Flamengo, pela primeira vez, não há um vice-presidente acima de mim tomando decisões sobre futebol. Isso dá mais responsabilidade à estrutura profissional, garantindo que as decisões sejam tomadas por quem realmente vive o futebol. O sucesso, claro, depende de muitas variáveis, mas estamos criando um ambiente onde as escolhas são feitas com base em conhecimento e experiência, e não por política interna. Não é só o treinador que é responsável, é o treinador e há um diretor de futebol que foi responsável por uma série de decisões no futebol profissional, e que é tão responsável quanto o treinador nas vitórias e nas derrotas.
- Um campeão brasileiro seria campeão em Portugal?
- Não gosto muito dessas comparações porque podem soar ridículas, mas diria que, por exemplo, este Flamengo lutaria pelo título em Portugal.
- Este que está a construir?
- Este Flamengo, que nem foi construído por mim, mas onde eu estou hoje, lutaria pelo título em Portugal.
- O Palmeiras de Abel Ferreira também?
- O Palmeiras de Abel também. De uma forma diferente, teria que se adaptar a jogar em relva natural [o relvado do Palmeiras é sintético], mas acredito que essas duas ou três equipas disputariam o título em Portugal e noutros países. Não ficariam para trás, até porque há uma questão de ritmo de jogo que se adquire na Europa, mas certamente estariam entre os primeiros colocados em muitas ligas europeias.
- E vice-versa? Um Benfica, Sporting, Porto seriam campeões no Brasil?
- Há uma ideia errada, até pelos media aqui, de que o Benfica ou o FC Porto não lutariam pelo título no Brasil. Não digo as equipas atuais, mas o melhor Benfica, o melhor Sporting, o melhor FC Porto, sim, lutariam pelo título no Brasil sem dúvidas.
Em Portugal andaria pelo meio da tabela.. mas está bem, sonhar não é proibido..