Cruijff estreou-se pelo Barcelona há 50 anos e o resto é história
Um bis ao Granada marcou o arranque para uma das recuperações mais notáveis da história do futebol
Johan Cruijff estreou-se há precisamente 50 anos pelo Barcelona, ao qual chegara já em conflito com o Ajax. Em Amesterdão, tinha-se tornado braço-direito de Rinus Michels e coadjuvado o velho general na conquista da primeira Taças dos Clubes Campeões Europeus. Michels sai depois para o Barcelona, entra em cena o mais politicamente correto Stefan Kovacs, que mesmo acusado de alguma permissividade perante os excessos dos jogadores, conduz o clube ao maior período de domínio do futebol internacional, com outras duas Taças continentais, uma Supertaça Europeia e ainda outra Intercontinental. Enquanto o totaalvoetbal, apesar de ainda longe de florir, já está a ser semeado por Michels na Catalunha, Kovacs dá lugar a George Knobel, que ao querer equilibrar a balança quebra o ciclo de sucesso. Deixa que sejam os jogadores a escolher o capitão e estes, cansados da esmagadora influência de Cruijff (ainda mais visível em Kovacs), decidem-se por Piet Keizer, um extremo por vezes brilhante e sobretudo crítico da liderança do anterior capitão, que aproveita para fazer as malas e seguir viagem, tornando-se o jogador mais bem pago do planeta.
No entanto, os adeptos tiverem de esperar dois meses e meio para poder vê-lo em campo em jogos oficiais. A contratação tinha sido concluída no dia 13 de agosto de 1973, mas o presidente da federação holandesa, Japp Van Praag, influenciado pelos arrependidos dirigentes do Ajax, não a autorizava por entender que esta devia ter sido realizada entre os dias 1 e 31 de julho. Dizia-se que a autorização só chegaria em dezembro, mas acabou por chegar no final de outubro. Para combater a falta de ritmo competitivo, Cruijff participou em quatro amigáveis diante do Club Brugge, Kickers Offenbach, Arsenal e Ourense, que também serviram para compensar o dinheiro investido pelos 'culés'.
Ficha do Barcelona-Granada de 1973
Estádio: Camp Nou, 100.000 espectadores
Barcelona - Sadurní; Rifé, Torres, Costas, Cruz, Juan Carlos, Juanito, Asensi, Cruijff, Sotil e Marcial
Granada - Izcoa; Montero Castillo, Falito, Fernández, Toni, Santi (Cabrera, 75'), Chirri, Jaén, Quiles, Dueñas (Martín, 59') e Porta
Golos: 1-0, De la Cruz (44'); 2-0, Cruijff (50'); 3-0, Sotil (59'); 4-0, Cruijff (68')
Cruijff estreou-se no dia 28 de outubro de 1973, diante do Granada. Era na altura o quarto a contar do fim da tabela, ocupado pelo Sporting Gijón, depois de três derrotas em sete jornadas. O 'Pitágoras com Botas', como lhe chamou David Winner em 'Brilliant Orange: the Neurotic Genius of Dutch Football', bisou e conduziu os catalães a uma goleada por 4-0, iniciando também aí um ciclo de 23 jogos sem perder. BCruijff está de novo no comando: empurra os catalães para a demolição do Real Madrid no Bernabéu por 5-0 e marca ele próprio o 'golo impossível' diante do Atlético Madrid, um pontapé acrobático ao segundo poste, de calcanhar, todo no ar. O Barcelona passa de quarto a contar do fim a finalmente campeão, 14 anos depois do último título.
Vestido de laranja, mas com duas listas sobre os ombros — para honrar os compromissos pessoais publicitários com a Puma, quando a Holanda é patrocinada pela Adidas —, é o capitão do seu país no Campeonato do Mundo de 1974. A Laranja Mecânica vence Uruguai e Bulgária e, durante o nulo com a Suécia, o 14 inventa, diante do defesa Jan Olsson, uma das fintas mais célebres da história do jogo: a Cruijff-turn — a autobiografia do holandês chama-se precisamente “My Turn” (título que pode ser lido de maneira ambígua, como “A Minha Vez” ou como “A Minha Finta”) —, imitada por muitos, inclusive pelo antigo internacional português João Vieira Pinto. Seguem-se os 4-0 à Argentina, 2-0 à RDA e 2-0 ao Brasil. Favoritos e com confiança em excesso — que a história de vários jogadores na companhia de mulheres no jacuzzi do hotel, publicada na imprensa germânica, não parecia ter feito abalar —, a Holanda esquece-se de marcar um segundo golo depois de um arranque brilhante e torna-se numa das maiores derrotadas da história. Depois do penálti que dá a vantagem logo nos primeiros minutos, a marcação de Berti Vogts não volta a vacilar e Cruijff pouco mais se vê nesse encontro.
No Barcelona, os resultados não voltam a ser os mesmos e Cruijff falha no compromisso de levar a equipa à conquista da Taça dos Campeões. Mesmo internamente e já sem Rinus Michels, que sai em 1975, os catalães não conseguem repetir o brilhantismo daquela primeira grande temporada com o génio holandês.
Renuncia ao Mundial de 1978, depois de um assalto à sua casa, com a família no interior, numa decisão em que novamente o patrocínio da Puma e o regime militar na Argentina também terão tido um pouco de peso, e ameaça uma primeira vez a reforma, contudo emigra para os Estados Unidos. É ainda como jogador dos Washington Diplomats que, no dia 30 de novembro de 1980, desce das bancadas do De Meer — antigo estádio do emblema de Amesterdão — até ao banco do Ajax, onde se senta a orientar uma equipa que, com um já muito criticado Leo Beenhakker ao comando, perde por 3-1 com o Twente. «Devia ter-lhe dado um murro logo ali», dirá o então treinador principal mais tarde. A verdade é que o estádio entra em ebulição e o Ajax vira mesmo o jogo.
Regressa a Espanha em 1981, sem dinheiro, depois de vários investimentos financeiros malsucedidos, entre os quais uma quinta de criação de porcos. O destino é o Levante. Depois de Valência, joga dois anos ainda no Ajax e o último no Feyenoord, já com 36 anos, liderando os de Roterdão ao título e à conquista da Taça.
Promessa cumprida já como treinador
A influência de Cruijff no jogo dispara a partir do momento em que se torna treinador. O Ajax entrega-lhe o comando e leva os amsterdammers à conquista da Taça dos Vencedores das Taças de 1987 e de duas taças nacionais. É nesta fase que desenvolve o seu sistema favorito, o 3x4x3 (com a variante do 4x3x3), com três defesas móveis, um médio-defensivo, dois médios controladores, dois extremos bem encostados à linha, um segundo avançado e um avançado-centro versátil.
Novamente chamado pelo Barcelona, o jovem treinador monta o Dream Team, misturando jogadores espanhóis com verdadeiros craques mundiais. E, inspirando-se no sistema juvenil do Ajax fomentado por Michels, Cruijff reestrutura La Masía. Os catalães conquistam quatro campeonatos de 1991 a 1994, a Taça do Rei em 1990, três Supertaças Espanholas, a Taça dos Vencedores das Taças em 1989 — o primeiro troféu europeu da história culé —, a Taça dos Campeões Europeus em 1992, ambas diante da Sampdoria, e a Supertaça Europeia no mesmo ano.
Onze troféus, que elevam Cruijff ao estatuto de melhor treinador de sempre até então. Orienta depois a seleção da Catalunha, passa a ser conselheiro não oficial do presidente Joan Laporta e depois diretor técnico, conselheiro e membro da direção do Ajax, demitindo-se pela última vez quando não é consultado sobre a nomeação de Van Gaal para CEO. Leva o clube a tribunal, ganha o processo e impede a cooptação. É ainda depois diretor técnico do Chivas de Guadalajara.
Sempre polémico e nem sempre feliz nos relvados ou no banco é, sem dúvida, uma das maiores influências que o jogo já teve. Há quem o considere a personagem mais importante da história do futebol pelo que alcança enquanto jogador e treinador, mas sobretudo pelas ondas de choque que se seguem.