Cruijff estreou-se pelo Barcelona há 50 anos e o resto é história
Cruijff estreou-se há 50 anos pelo Barcelona (Foto: Barcelona)

Cruijff estreou-se pelo Barcelona há 50 anos e o resto é história

INTERNACIONAL28.10.202313:05

Um bis ao Granada marcou o arranque para uma das recuperações mais notáveis da história do futebol

Johan Cruijff estreou-se há precisamente 50 anos pelo Barcelona, ao qual chegara já em conflito com o Ajax. Em Amesterdão, tinha-se tornado braço-direito de Rinus Michels e coadjuvado o velho general na conquista da primeira Taças dos Clubes Campeões Europeus. Michels sai depois para o Barcelona, entra em cena o mais politicamente correto Stefan Kovacs, que mesmo acusado de alguma permissividade perante os excessos dos jogadores, conduz o clube ao maior período de domínio do fu­tebol internacional, com outras duas Taças continentais, uma Supertaça Europeia e ainda outra Intercontinental. Enquanto o totaalvoetbal, apesar de ainda longe de florir, já está a ser semeado por Michels na Catalunha, Kovacs dá lugar a George Knobel, que ao querer equilibrar a balança quebra o ciclo de sucesso. Deixa que sejam os jogadores a escolher o capitão e estes, cansados da esmagadora in­fluência de Cruijff (ainda mais visível em Kovacs), decidem-se por Piet Keizer, um extremo por vezes brilhante e sobretudo crítico da liderança do anterior capitão, que aproveita para fazer as malas e seguir viagem, tornando-se o jogador mais bem pago do planeta. 

No entanto, os adeptos tiverem de esperar dois meses e meio para poder vê-lo em campo em jogos oficiais. A contratação tinha sido concluída no dia 13 de agosto de 1973, mas o presidente da federação holandesa, Japp Van Praag, influenciado pelos arrependidos dirigentes do Ajax, não a autorizava por entender que esta devia ter sido realizada entre os dias 1 e 31 de julho. Dizia-se que a autorização só chegaria em dezembro, mas acabou por chegar no final de outubro. Para combater a falta de ritmo competitivo, Cruijff participou em quatro amigáveis diante do Club Brugge, Kickers Offenbach, Arsenal e Ourense, que também serviram para compensar o dinheiro investido pelos 'culés'. 

Ficha do Barcelona-Granada de 1973

Estádio: Camp Nou, 100.000 espectadores

Barcelona - Sadurní; Rifé, Torres, Costas, Cruz, Juan Carlos, Juanito, Asensi, Cruijff, Sotil e Marcial

Granada - Izcoa; Montero Castillo, Falito, Fernández, Toni, Santi (Cabrera, 75'), Chirri, Jaén, Quiles, Dueñas (Martín, 59') e Porta

Golos: 1-0, De la Cruz (44'); 2-0, Cruijff (50'); 3-0, Sotil (59'); 4-0, Cruijff (68')

Cruijff estreou-se no dia 28 de outubro de 1973, diante do Granada. Era na altura o quarto a contar do fim da tabela, ocupado pelo Sporting Gijón, depois de três derrotas em sete jornadas. O 'Pitágoras com Botas', como lhe chamou David Winner em 'Brilliant Orange: the Neurotic Genius of Dutch Football', bisou e conduziu os catalães a uma goleada por 4-0, iniciando também aí um ciclo de 23 jogos sem perder. BCruijff está de novo no comando: empurra os catalães para a de­molição do Real Madrid no Bernabéu por 5-0 e marca ele próprio o 'golo impossível' diante do Atlético Madrid, um pontapé acrobático ao segundo poste, de calcanhar, todo no ar. O Barcelona passa de quarto a contar do fim a finalmente campeão, 14 anos depois do último títu­lo.

Vestido de laranja, mas com duas listas sobre os ombros — para honrar os compromissos pessoais publicitários com a Puma, quando a Holanda é patrocinada pela Adidas —, é o capitão do seu país no Campeonato do Mundo de 1974. A Laranja Mecâni­ca vence Uruguai e Bulgária e, durante o nulo com a Suécia, o 14 inventa, diante do defesa Jan Olsson, uma das fintas mais célebres da história do jogo: a Cruijff-turn — a autobiografia do holandês chama-se precisamente “My Turn” (título que pode ser lido de ma­neira ambígua, como “A Minha Vez” ou como “A Minha Finta”) —, imitada por muitos, inclusive pelo antigo internacional português João Vieira Pinto. Seguem-se os 4-0 à Argentina, 2-0 à RDA e 2-0 ao Brasil. Fa­voritos e com confiança em excesso — que a história de vários jo­gadores na companhia de mulheres no jacuzzi do hotel, publicada na imprensa germânica, não parecia ter feito abalar —, a Holanda esquece-se de marcar um segundo golo depois de um arranque bri­lhante e torna-se numa das maiores derrotadas da história. Depois do penálti que dá a vantagem logo nos primeiros minutos, a mar­cação de Berti Vogts não volta a vacilar e Cruijff pouco mais se vê nesse encontro. 

Johan Cruijff ao serviço do Barcelona na meia-final da Taça dos Campeões de 1974/75 diante do Leeds (Foto: Colorsport/IMAGO)

No Barcelona, os resultados não voltam a ser os mesmos e Cruijff falha no compromisso de levar a equipa à conquista da Taça dos Campeões. Mesmo internamente e já sem Rinus Michels, que sai em 1975, os catalães não conseguem repetir o brilhantismo da­quela primeira grande temporada com o génio holandês.

Renuncia ao Mundial de 1978, depois de um assalto à sua casa, com a família no interior, numa decisão em que novamente o patrocínio da Puma e o regime militar na Argentina também te­rão tido um pouco de peso, e ameaça uma primeira vez a reforma, contudo emigra para os Estados Unidos. É ainda como jogador dos Washington Diplomats que, no dia 30 de novembro de 1980, desce das bancadas do De Meer — antigo estádio do emblema de Ames­terdão — até ao banco do Ajax, onde se senta a orientar uma equi­pa que, com um já muito criticado Leo Beenhakker ao comando, perde por 3-1 com o Twente. «Devia ter-lhe dado um murro logo ali», dirá o então treinador principal mais tarde. A verdade é que o estádio entra em ebulição e o Ajax vira mesmo o jogo. 

Regressa a Espanha em 1981, sem dinheiro, depois de vários investimentos financeiros malsucedidos, entre os quais uma quinta de criação de porcos. O destino é o Levante. Depois de Valência, joga dois anos ainda no Ajax e o último no Feyenoord, já com 36 anos, liderando os de Roterdão ao título e à conquista da Taça. 

Johan Cruijff no banco do Barcelona (Foto: Pressefoto Baumann/IMAGO)

Promessa cumprida já como treinador

A influência de Cruijff no jogo dispara a partir do momento em que se torna treinador. O Ajax entrega-lhe o comando e leva os amsterdammers à conquista da Taça dos Vencedores das Taças de 1987 e de duas taças nacionais. É nesta fase que desenvolve o seu sistema favorito, o 3x4x3 (com a variante do 4x3x3), com três defesas móveis, um médio-defensivo, dois médios controladores, dois extremos bem encostados à linha, um segundo avançado e um avançado-centro versátil. 

Novamente chamado pelo Barcelona, o jovem treinador monta o Dream Team, misturando jogadores espanhóis com ver­dadeiros craques mundiais. E, inspirando-se no sistema juvenil do Ajax fomentado por Michels, Cruijff reestrutura La Masía. Os catalães conquistam quatro campeonatos de 1991 a 1994, a Taça do Rei em 1990, três Supertaças Espanholas, a Taça dos Ven­cedores das Taças em 1989 — o primeiro troféu europeu da história culé —, a Taça dos Campeões Europeus em 1992, ambas diante da Sampdoria, e a Supertaça Europeia no mesmo ano. 

Cruijff leva Barcelona à conquista da Taça dos Campeões Europeus de 1992 ao vencer a Sampdoria na final por 1-0 (Foto: Colorsport/IMAGO)

Onze troféus, que elevam Cruijff ao estatuto de melhor treinador de sempre até então. Orienta depois a seleção da Catalunha, passa a ser conselhei­ro não oficial do presidente Joan Laporta e depois diretor técnico, conselheiro e membro da direção do Ajax, demitindo-se pela úl­tima vez quando não é consultado sobre a nomeação de Van Gaal para CEO. Leva o clube a tribunal, ganha o processo e impede a cooptação. É ainda depois diretor técnico do Chivas de Guadala­jara. 

Sempre polémico e nem sempre feliz nos relvados ou no ban­co é, sem dúvida, uma das maiores influências que o jogo já teve. Há quem o considere a personagem mais importante da história do futebol pelo que alcança enquanto jogador e treinador, mas sobre­tudo pelas ondas de choque que se seguem.