Espaço Universidade Um agnóstico devoto (artigo de Manuel Sérgio, 373)
No que diz respeito ao conhecimento de Deus, considero-me, racionalmente, um Agnóstico Devoto. Ou seja, não sei quem é Deus, mas vivo como se O conhecesse. Pela fé, acredito no Deus de Jesus Cristo e na conversão por ele postulada – uma conversão que é, simultaneamente, religiosa, social e política. Política? De facto, porque leio e medito os Evangelhos; porque estou (criticamente) atento ao que o Papa Francisco vem ensinando – a fé tem de corporizar-se na prática de uma sociedade democrática, igualitária e solidária, onde a conversão religiosa ao Deus de Jesus Cristo não invalida (mas supõe) a luta histórica por um mundo diferente. Mas uma religião como proposta e não como imposição e uma luta histórica como Jesus a fez, sem terrorismo, nem violência.
«O Jesus histórico se opôs a utilizar o poder para impor a vontade de Deus, isto eximiria os homens de sua tarefa libertadora; não seriam tampouco os sujeitos da transformação pessoal e social, mas meros beneficiários. Preferiu morrer a implantar o reino de Deus, mediante a violência. E, se não fosse assim, surgiria não um Reino de Deus, mas um Reino feito da vontade do poder humano, baseado na dominação, na ausência da liberdade» (Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, Petrópolis, 2001, p. 32).
Racionalmente, com o débil vigor mental que ainda me resta, levanto a mim mesmo esta pergunta: porque existe o mundo, porque existem as pessoas, porque existem milhões de galáxias e não existe nada? E a resposta, com mais ou menos intemperança verbal, tanto da religião e da filosofia, como do conhecimento científico, chega-me sempre associada a uma advertência: a este respeito, a ciência pouco sabe, a religião não diz o suficiente e, tanto a lógica aristotélica como a clarté cartesiana, a até as «Investigações Lógicas» de Husserl, pouco esclarecem. «Aquilo que diferencia essencialmente Husserl de grande parte do pensamento filosófico posterior acerca da linguagem no século XX e, especialmente, da tendência geral e principal como esse pensamento se desenvolveu é o fato de que, na sua separação rigorosa entre expressão (com significação) e sinal (somente orientador do comportamento) a comunicação ficar classificada do lado do sinal» (Diogo Ferrer, Transparências – Linguagem e Reflexão de Cícero a Pessoa, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, p. 51).
Se bem sei ver a História da Filosofia, três escolas (a espiritualista, a materialista e a racionalista) personificam um interesse maior por esta problemática: Deus existe, per omnia saecula saeculorum, e criou o mundo? Vivi dois anos no Brasil (os anos de 1987 e de 1988) e até ao ano de 2017 visitei-o, a média de três vezes por ano. Conheci a Teologia da Libertação, que rejuvenesceu a minha fé, norteado pela obra singular de dois autores brasileiros: Leonardo Boff e Rubem Alves. Com ela me identifico, associada à Evolução, nas suas linhas gerais, em Teilhard de Chardin e com os valores do cristianismo proclamado pelo Papa Francisco. Segundo o protocolo materialista, de Demócrito, até Karl Marx e o positivismo, a matéria é eterna, tudo é matéria e o que se entende por espírito não passa de um epifenómeno da matéria. No nosso tempo, racionalista, relativista, individualista, Deus não pode provar-se, Deus não é da ordem da demonstração, há mesmo limites físicos para compreendê-lo.
Como estudioso da epistemologia (julgo mesmo ter sido a primeira pessoa que, em língua portuguesa, aconselhou, nas décadas de 60 e 70, o contributo da epistemologia ao estudo da educação física e do desporto) pergunto: se a vida é matéria melhor informada, como se explica essa informação? Por acaso? Mas foi por acaso que certos átomos se juntaram, para que assim nascessem as primeiras moléculas de aminoácidos? E foi ainda por acaso que essas moléculas se aproximaram para levantar esse edifício de alto grau de complexidade que é o ADN (ácido desoxirribonucleico)? E continuou a ser por acaso que se elaborou os planos da primeira molécula de ADN, portadora da mensagem que permitiu que a primeira célula viva se reproduzisse? Podemos mesma falar de um «acaso criador?? Não percorrerá e animará o Universo um vasto pensamento, que norteia cada partícula e átomo e molécula e célula? Não há sentido na Evolução? E foi tudo por acaso, como pensava Jacques Monod?
Portanto, quando os jogadores profissionais de futebol, rezam, antes dos jogos, não fazem nada de pré-lógico. Pelo contrário, mostram acreditar que há uma racionalidade superior, uma infinita causalidade que tudo explica. Fazem suas as palavras do filósofo Jean Guitton: «Na origem da Criação, não há acontecimento aleatório, não há acaso, mas um grau de ordem infinitamente superior a tudo aquilo que podemos imaginar: ordem suprema que regula as constantes físicas, as condições iniciais, o comportamento dos átomos e a vida das estrelas-. Poderosa, livre, infinitamente existente, implícita, invisível, sensível, ela está ali, eterna e necessária, por trás dos fenómenos, acima do Universo, mas presente em cada partícula» (Jean Guitton, Deus e a Ciência, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1992, p. 66).
Uma ordem misteriosa e subjacente governa a Evolução, onde as descontinuidades são constantes. De facto, a Matéria, a Vida e o Espírito não vivem em permanente equilíbrio, ou no in médio stat virtus. A vida desenvolve-se, ora em equilíbrio, ora em desequilíbrio. Ao nível do pensamento, um permanente equilíbrio converte-se em cristalização, em esclerose, em toda a sorte de monomanias, de esquizofrenias, de paranóias. Não é a Vida que deve subordinar-se ao Pensamento, mas o Pensamento à Vida… e numa permanente dialética tensional! O pensamento ocidental sempre esteve, as mais das vezes, mais próximo do Idêntico e do Mesmo, desconhecendo assim o Outro e o Diferente. Por isso, para mim, julgo poder escrever que não há acaso na Evolução pois, em tudo o que é dinâmico e evolutivo, é por denúncia profética, vital e histórica que se vislumbra. E numa permanente dialética tensional, para que a transcendência aconteça, para que as «mudanças de paradigma» se concretizem. A dialética tomou o lugar da lógica da identidade e da não contradição. Já há muitos anos, num livro de Encarnação Reis, Igreja sem Cristianismo ou Cristianismo sem Igreja, eu aprendi que é preciso «dialectizar as noções de substância, unidade, causalidade, finalidade, os esquemas do sujeito cognoscente e do seu objecto conhecido, as noções de indivíduo, pessoa, sociedade, autoridade, liberdade, etc.» (Moraes Editores, Lisboa, p. 42).
Nasci a poucos metros do Estádio das Salésias que, em criança e rapaz, corri e percorri alegremente, de coração em festa; em 1968 comecei a trabalhar, no Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, que integrava a biblioteca do INEF; fui, durante 25 anos, um 'quase' dirigente do Clube de Futebol Os Belenenses; trabalhei, durante dois anos, na Faculdade de Educação Física da Unicamp-Brasil e, como adjunto do diretor-geral, na Direção-Geral de Apoio Médico; convivi (e aprendi) com figuras relevantes do desporto português e brasileiro e chileno e espanhol; lecionei (e estudei) no INEF, no ISEF e na FMH. Como arsenalista (no Arsenal do Alfeite) comecei a ler a literatura neo-realista que, entre alguns operários, circulava de mão em mão, no maior secretismo.
E por aqui me fico, que mais poderia aduzir. Em 1961, com 28 anos de idade, ingressei, no curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. E, pela camaradagem de alguns colegas e contemporâneos na Universidade, com relevo para o Medeiros Ferreira, o Manuel Ferreira Patrício e o António Borges Coelho e (não poderei escondê-lo) as aulas do Padre Manuel Antunes e pelo conhecimento da vida política nacional, que os meus 13 anos de Alfeite me proporcionaram, despontou em mim uma crise de consciência que explicava muito do que eu pensava, contradizendo-o. E a minha filosofia passou a ser, antes de tudo, filosofia da vida e da experiência dialeticamente percecionada, onde a transcendência seguia o desenho traçado por Teilhard de Chardin. Foi este autor, aliás, que me levou a uma prosa, embora, aqui e além, com um travo de desengano, de permanente inconformismo. Pela transcendência (ou superação), ou seja, por sucessivas roturas, a matéria se fez vida e a vida se fez espírito e a quantidade se fez qualidade. E, com o espírito, Deus parece ser a próxima etapa. Talvez não estejam assim tão longe da Verdade os desportistas que vêem em Deus o Alfa e o Omega da História!
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto