«Os doces do Pilar como prenda de Natal» (artigo de José Neto, 134)

Espaço Universidade «Os doces do Pilar como prenda de Natal» (artigo de José Neto, 134)

ESPAÇO UNIVERSIDADE16.12.202100:06

Nota de abertura – creio que este conto já foi publicado outrora em A BOLA online. Contudo e já que numa recente entrevista para o “Porto Canal” me solicitaram a referência ao Monte do Pilar e o significado que em mim jamais esmorecerá, volto a recordar passagens deste temp(l)o sagrado da minha existência:


“Não sou arquiteto, engenheiro ou geógrafo, nem artista tão pouco, mas uma coisa eu sustento no meu peito: um grande amor pelo Pilar!...
Aprendi a correr para os pés do Cristo Rei ainda pequenino, intervalando o colo do meu avô e o íngreme caminho estreito de terra batida nos dias de novena, anunciadores da Festa do 15 de agosto.


Recordo como se fosse hoje… logo que rebentava o primeiro dos morteiros bem lá no alto, parecia que sentia o alarme de chamada para o arranque da correria. Primeiro entre os carreiros do “engoeiro”, logo a seguir entrava nas matas do “esganado” e, num rápido, já agarrava as últimas canas do foguetório.
Muitas histórias tenho eu neste meu Pilar… vou contar apenas duas delas:


– Numa das Festas, tinha eu para aí uns 5 ou 6 anos, lá fui como sempre com o meu avô Florêncio – um espetáculo de homem que trabalhava arduamente nas terras do lavradio de noite a noite e ainda lhe sobrava tempo para historiar, ao calor do brasido do lar, a ternura dos seus contos de fadas… e, nas noites gélidas de Inverno, levava-me embaladamente para a sua cama e aquelas mãos grandes e calejadas como afagavam o meu rosto e, por entre seus lábios, entre canções de adormecer, soltava  um ar morninho, que tanto aquecia o meu corpo!…


Bom, dizia eu, lá íamos à Festa da Senhora do Pilar e dos momentos mais desejados era ouvir a nossa Banda e aproveitar o intervalo do concerto para comer qualquer coisita. 


Ouvir a música, pois então, era engraçado ver toda aquela gente respeitosamente fardada a fazer melodia… e tínhamos muita gente de Penamaior a tocar – o sr Faustino que fazia o cornetim “cantar”, os Soutos nos trombones, o sr Joaquim e mais tarde o Arlindo no bombardino, o sr Joaquim (camolas) na flauta, o tio Faustino de Inveja com os pratos… até o moço dos papéis era da casa – como é que não haveríamos de gostar de os ouvir (desde esse tempo que me ficou a paixão por ouvir a nossa Banda).
No intervalo para o lanche… que bem sabiam aqueles bolinhos de bacalhau deitados num pedaço de regueifa fresca e a caneca branquinha de vinho tinto que segurava a todo o preceito, pois claro, um golito não fazia nada mal – era das pipas do Sr. Faustino da Tulha!…
No regresso a casa e como tinham sobrado dois tostões do troco, fugi à atenção do meu avô e fui, num rápido, à senhora dos doces. Com o dinheiro à mostra, perguntei:


— Quanto custa um quilo de doces?
— Ó menino é muito caro! – Respondeu-me ela.
— E meio quilo? – Perguntei novamente… a vendedora nem tão pouco respondeu.
Já ía a uns trinta metros do tabuleiro… e voltei à carga, olhei para os dois tostões e voltei a perguntar:
— Quanto custa um doce?
— Isso não chega meu menino! – Respondeu-me a senhora dos doces com um sorriso.
— E meio doce? – Teimosamente voltei a questionar.
A senhora olhou para mim de forma meiga e atenta, pegou em três doces, meteu-os num cartucho de cor branca com umas riscas avermelhadas e ofereceu-me. Se fosse hoje ia direitinho à tenda do Sr. Amândio, que em vez de três, trazia quatro, dado que aquela simpática figura colocava sempre mais um doce no cartucho a quem recorresse à sua banca!...
De contente, saltei ao encontro do meu avô, já preocupado com o meu súbito desaparecimento. Mas o melhor da Festa foi aquele regressar a casa e oferecer a surpresa, feita em três doces embrulhados num cartucho à minha avó, que estava à nossa espera. Ah!…  e também os dois tostões do troco!…
Outra história… mais “atual”.


Passados alguns anos vi-me voluntário a prestar serviço militar no radar do Pilar!… aquelas fardas de cor creme, calça passadinha a ferro e boné sobre os olhos, lenço azul ao peito, galões dourados… quantos gemidos e ais…, mas não foi a farda que me levou voluntário para a Força Aérea. Um dos objectivos para que me visse nos 6 anos de voluntariado foi organizar o tempo para me preparar para a vida e o facto é que ingressei na vida militar com a frequência do 5.º ano e quando passei à disponibilidade estava na Faculdade de Direito de Coimbra...depois dei outro rumo à minha vida  ao encontro da minha verdadeira felicidade profissional.


A minha especialidade era a de Operador de Radar – um avião que levantasse voo a 220 milhas (mais ou menos na rota de Madrid), era imediatamente detectado e a nossa obrigação era segui-lo através do plano de voo, altitude, velocidade, etc… para além de outros exercícios militares de caças F86 que levantavam da Base de Monte Real, para ações de treino em combate!...


Trabalhávamos em regime de turnos – 24 horas de serviço e 48 horas de descanso. Se os dias de folga os preenchia por casa, pelos cafés do Gomes e do Amândio – estudava numa segunda mesa, numa rica salinha de chá que dava àquele café uma graça especial, o dia de serviço era no Pilar. 
Trabalhava uma hora e descansava outra; essa, dita de descanso, era bem-vinda para, de livro e sebenta abertos, ultrapassar as redes, descer um pouco mais para as lajes a caminho da “cova da loba” ou então ficar mais perto e meter-me pelos encantos debaixo do sobreiro, ou no muro da capela da Senhora ou ali na escadaria que desce para o forno, ou ainda debaixo dos braços do Cristo Rei – eu sei lá – pedaços de vida de estudo ganhos naqueles recantos que hoje visito com saudade e que outrora serviram de assento, encanto ou passadeira na preparação de mais uma dispensa da oral na minha vida de militar/estudante!…


O meu Pilar… que de lá o vento sopra e me traz a saudade do passado!… Subo ao teu encontro para ver o mar e, no horizonte infinito, encontrar o menino agarrado a uma mão calejada dum grande senhor chamado Florêncio que eu humildemente persisto em honrar!…
Este Pilar do Ermitão, cuja lenda a história Pacense conta!…


O meu Pilar cujos fornos outrora, nas vésperas da Festa, faziam uma linha de fogo vista pela noite adentro e que hoje gostava de ver reconstruídos onde o anho pudesse servir de ementa das famílias comunitárias que os visitassem!…
Este Pilar com um Cristo Rei de braços bem abertos, prontos a abraçar quem o contempla!... 
… mas o que tem Agosto e o Pilar a ver com o Natal, repito eu?
É claro que todos dizemos que é Natal sempre que o homem quiser e por isso recorri ao temp(l)o sagrado da minha existência, associando também o encontro com o Cristo Rei do nosso Pilar. Ainda hoje, quando subo ao seu encontro olho-O e quase sempre experimento uma imagem descrita por um sentimento de cumplicidade. Contemplo este Cristo protetor de toda a minha terra que lhe cai aos pés, pródiga de graça e formusura… daí um renascer imediato para a vida, logo fazendo Natal… e, claro, não esquecendo o dito cartucho de riscas rosadas em que me colocaram os três doces da Festa.
E também porque, numa madrugada de 25 de dezembro, correspondente ao relato descrito, desato em correria e me dirijo para a lareira onde ainda se sentia o calor da chama da noite santa e que vejo?!… Precisamente encostada à parede do forno de coser a boroa, o tal cartucho dos doces de riscas rosadas, envolvido por fitinhas douradas.
Lá estava a minha prenda de Natal, um sortido variado de chocolates e rebuçados e ainda um testemunho escrito num pedacinho de lousa que ainda religiosamente guardo – pró nosso netinho um lindo e Feliz Natal! (assinado) Emília e Florêncio.

Um Natal abençoado para os meus queridos leitores e que o MENINO JESUS volte a renascer no coração de todos nós e seja capaz de iluminar os caminhos duma renovada esperança.


Boas Festas


José Neto: Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto; Formador de Treinadores F.P.F./U.E.F.A.; Docente Universitário - Universidade da Maia/ISMAI.