Espaço Universidade «Os cantadores das Janeiras» (artigo de José Neto, 135)
Nota de abertura – Costuma-se dizer que o que é fácil lembrar para quem tem memória, é difícil esquecer para quem tem coração. Deste modo pretendo cultivar a minha memória, fazendo um regresso ao passado, convertendo a vida feita de estórias, neste caso, entre gente humilde da terra que me ajudou a crescer e da qual muito me honra ter sido também sua pertença. Pode ter sido este conto em tempos objeto de publicação, mas anoto algumas reflexões de conteúdo, o que lhe acaba por conferir uma prova de reedição:
“Uma pandeireta sem fundo, a roda de aço suspensa na baraça do pião e uma harmónica de beiços que “gemia” em agonia três ou quatro notas soltas perfazia o instrumental que servia de fundo a meia dúzia de vozes franzinas que rompiam por entre o silêncio das noites gélidas cercadas pelo luar dum janeiro a nascer:
«Olhei para o céu, estava estrelado
Vi o Deus Menino em palhinhas deitado
Em palhinhas deitado, em palhinhas estendido
Filho duma rosa e dum cravo nascido»
«Pastorinhos do deserto
Correi todos, vinde ver
A pobreza da lapinha
Onde Cristo quis nascer»
Depois do cântico “dos vivas” aos senhores da casa e dos seus meninos, gerava-se a expectativa no grupo. Olhos fitados numa janela com a luz a espreitar, era o estender de mãos à procura dum “trocadito” que era lançado com algumas recomendações: – “olhai lá se prá próxima, trazeis uma gaita mais afinada!” …ou: – “anda por aí uma voz que até mete medo!” …ou, na melhor das hipóteses: - “muito bem, por isso lá vão 25 tostões!”…
O giro estava traçado – saímos da Igreja, vamos ao Sr. Abade (P.e Ramiro) – “Oh!… dali só vêm restos de hóstias e bolachas Maria (das pequenas)”, refilavam alguns…Bom, depois vamos por Vale de Suz ao Sr. Urbaninho – “isso, isso” – animados com a certeza de melhor oferta. Seguimos pelo 5 merreis – “eh lá, isso não, que ele solta os cães!”, balbuciavam outros… Depois, damos um salto ao Sr. Quinzinho da Bouça, vimos pelo Sr. Toninho da Inveja e logo ao Sr. Protazinho!… Lá fazíamos a estafeta serpenteada por entre o caminheiro carregado de ilusões e canseiras…e alguns tostões na boina. Recordo um dos janeiros, (muito húmido e frio, em que a noite apareceu mais cedo, escura e fustigada por forte ventania. Quis o nosso grupo encurtar o caminho para fugir ao temporal que se fazia anunciar: “rápido, rápido… vamos, vamos… dás só dois vivas e pronto!” …Avança o Manel do ferreiro, sempre o mais fortalhaço e destemido e logo a ondulada perseguição em estreita correria. Ali para os lados da Cruz, houve uma troca de passos e, num ápice, surge um grito agoniante do Manel, seguido pelo chafurdanço na presa. A sorte é que a água lhe ficou pela cintura, mas… lá se foi a boina com algumas branquinhas!…
Mas nem tudo correu mal. Chegados a casa dos meus avós, toca a acender o lume para secar o Manel. Mesmo por cima do espreguiceiro, espreitavam uns chouricitos, farinheiras e alguns presuntos. Foi mesmo com a vara de varejar o castanheiro que duma estocada vimos voar 4 chouriços e algumas farinheiras… e com o calor das brasas, o resto da noite viu-se bem animado com muita alegria e apetite dos cantadores de Janeiras… mesmo de bolsos vazios!”…
Que neste tempo confinado pela agonia da distância, pela ameaça do conflito, pela saudade do encontro, as “Janeiras ” sejam cantadas entre portas de cada um, trazendo para novo ano de 2022 um sinal de renovada esperança na conquista do futuro.
José Neto: Metodólogo de Treino Desportivo; Mestre em Psicologia Desportiva; Doutorado em Ciências do Desporto; Formador de Treinadores F.P.F./ U.E.F.A.; Docente Universitário.