Espaço Universidade Desporto: práticas e discursos (artigo de Vítor Rosa, 178)
Inserido nas relações de força, o desporto vive ao ritmo das estratégias, das tensões e dos conflitos nacionais e internacionais. Suprimidos por causa da guerra em 1916, 1940 e 1944, os Jogos Olímpicos (JO) não escaparam à convulsão planetária. Excluída das competições por três vezes, 1920, 1924 e 1948, a Alemanha, implodida politicamente no dia seguinte da Segunda Guerra Mundial, se divide desportivamente em outubro de 1965, quando o Comité Olímpico Internacional (CIO) cede às pressões do Comité Nacional da República Democrática (CNRD).
Na URSS é no fim do reinado de Estaline (1878-1953) que o país coloca um ponto final no seu longo isolamento (1912-1952). Depois da Guerra Fria (com uma separação entre países do “Primeiro Mundo” e do “Segundo Mundo”), os dois Grandes dialogam pelos interpostos atletas no quadro da coexistência pacífica. Em 1968, os JO de Verão do México abrem-se aos massacres dos estudantes sobre a Praça das Três-Culturas (o número de mortos permanece incerto, mas apontam-se entre os 200 e os 300). Nesses Jogos, para protestar contra a segregação racial nos EUA, os atletas negros Tommie Smith e John Carlos levantam o punho no pódio e são expulsos da vila olímpica. Em 1972, 35 países estão prestes a boicotar os Jogos se uma equipa do regime racista da Rodésia é admitida.
O atentado do grupo terrorista palestino “Setembro Negro” em Munique, o afastamento massivo dos países africanos em 1976, em Montreal, o boicote dos JO em Moscovo por quarenta países em 1980, a República Soviética em 1984, em Los Angeles, ilustram o mito do relaxamento. Não tenhamos dúvidas, o desporto é um instrumento de propaganda dos países, onde se dá os “jogos”, por falta de dar o pão e as liberdades. A política está no coração do desporto e do olimpismo. Mas o desporto não é apenas político; ele é uma política. Embora não descarte a validade de outros argumentos, ele impregna os espíritos por incorporação inconsciente de valores: a performance, a competição, a lei do mais forte, o culto dos chefes e dos heróis, a apologia da seleção, da disciplina, do sofrimento e do sacrifício, a vontade de grandeza, a amizade viril, etc.
Existe um trabalho de domesticação, tendo por efeito fazer habitar o sistema desportivo pela sua população e a população pelo sistema desportivo. Todos os Governos saúdam os “seus” campeões e encorajam a prática de massas e de alto rendimento. Mas, como diz Giddens (2004), “numa sociedade que valoriza a juventude, a vitalidade e a aparência física, os idosos tendem a tornar-se invisíveis” (p. 168). A propaganda desportista, amplamente alimentada pelos meios de comunicação social, leva à mobilização regular de multidões quando das grandes competições. Com os seus milhões de praticantes, espectadores e telespectadores, o desporto de hoje é o maior espetáculo do mundo, organizado como uma liturgia periódica popular, cuja dimensão política não pode ser negligenciada. Quer o queiramos ou não, vivemos num mundo complicado e estranho.
Referência
Giddens, A. (2004). Sociologia, 4.ª ed.. Fundação Calouste Gulbenkian.
Vítor Rosa
Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa