Espaço Universidade Da evolução do desporto (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 47)
O desporto integra situações motoras competitivas, normalmente apelidadas de técnicas e que desembocam em tácticas e estratégias, com competições a todos os níveis (etários, geográficos, por modalidades) designando vencedores e vencidos, comporta actividades codificadas sujeitas a regras e regulamentos, e é estruturado e organizado através de um sistema institucionalizado em torno de clubes, associações, federações e grandes organizações (COI, UEFA, FIFA e muitas outras dependendo das modalidades), apoiando-se em exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os mass media, com a política e com a economia.
A hierarquização dos competidores (classificações, pódios, medalheiros, campeões disto e daquilo, detentores deste ou daquele recorde) não é mais do que a criação de um conjunto de condições de desigualdades – o desporto descrimina. A intenção de cada desportista (do seu treinador, dos seus dirigentes, e até das mais altas individualidades políticas do seu país) ao desejar ser um vencedor, um campeão ou um recordista, traduz-se, por consequência, na sua transformação de um produtor de derrotados. E se “ na vitória pouco se aprende, mas muito se aprende com a derrota”, então teremos de reconhecer que o desporto ao criar um maior número de derrotados que de vencedores é de facto uma actividade onde abunda a aprendizagem… só que teremos de conhecer quais os objectivos e quais os conteúdos dessa aprendizagem.
O desporto não evoluiu só da cana de bambu à fibra de carbono, dos quadros de ferro aos de alumínio e titânio e às rodas lenticulares, do cabedal ao kevlar, do algodão à licra ou ao neopreno e ao poliuretano, da cinza ao tartã, do treino em altitude às câmaras isobáricas, do massagista ao fisioterapeuta, do rolamento ventral ao fosbury flop, das travessas aos pitons… o desporto evoluiu também em termos de organização, de regulamentação, de exploração de merchandising e de publicidade, de transmissões e de direitos de imagem, mas também em termos de consciencialização dos competidores – afinal os grandes actores, que, apesar de serem formatados como carne para canhão, se vão lentamente libertando (alguns!) dessas amarras.
A agressão a um cavalo nos J. O. de Tóquio por parte de uma treinadora de pentatlo moderno – a alemã Kim Raisner –, já deu origem à modificação dos regulamentos no que diz respeito à prova de equitação por parte da Federação Internacional desta modalidade.
A medalha de ouro de um karateka (o iraniano Sajad Ganjzadeh) nos mesmos J. O. por desclassificação do seu adversário (o saudita Tareg Hamedi) na prova de combate – segundo alguns excesso de contacto deste último, segundo outros inexistência deliberada de protecção e «comportamento teatral» de vencedor, mas tudo observações subjectivas – veio equacionar a modificação dos regulamentos nesta prova.
O recente debate em torno da preparação psicológica de desportistas (assim como do seu acompanhamento) e a prevenção de situações de stress e de depressão alertou-nos para o facto de que algo terá de ser modificado não só na metodologia de treino mas também em termos organizacionais a fim de evitar a exploração desses desportistas (é urgente debelar-se o treino intensivo precoce!).
A queda do uruguaio Maurício Moreira no contra-relógio final da Volta a Portugal e que lhe retirou a vitória na mesma, veio colocar a nu «métodos e vícios antigos existentes no ciclismo português» (Fernando Emílio, «A Bola», 17.08.2021, p. 26).
O anúncio da primeira Volta a Portugal feminina em bicicleta vem precisamente demonstrar-nos também que, nos tempos que correm, algo evolui no desporto…
A admissão de boicote à Liga Europeia de hóquei em patins por parte da Associação Europeia de Clubes dado o modelo de 16 equipas em dois grupos ter sido preterido em favor de um formato com 20 equipas e duas fases em que jogariam todas entre si até à final four – com a consequente sobrecarga para os desportistas – veio abanar modelos de organização de competições.
A recusa por parte de clubes espanhóis de futebol em cederem jogadores seus para selecções sul-americanas devido à remarcação de novas datas para as provas de qualificação para o Mundial de 2022 apresenta novos contornos no futebol. Jorge Valdano («A Bola»,28.08.2021, p.32) pergunta: «é mais importante a Premier League do que o Mundial?» E ele próprio dá a resposta: «Não, é mais importante o poder económico que o poder simbólico.»
Entre os nossos muros, na nossa quinta, como evolui o desporto? Em que sentido? Deixamos só alguns indicadores: 1 – Portugal não teve ninguém na maratona masculina dos J. O. de Tóquio, o que acontece pela primeira vez desde 1968… há 53 anos… 2 – 92 competidores e 18,5 milhões de euros para 4 medalhas: muito, pouco ou assim-assim? 3 – 33 competidores paralímpicos numa comitiva de 77 elementos… 4 – O Ministério da Educação quer o desporto escolar mais ligado às federações desportivas… vai daí, no próximo ano lectivo, as equipas de alunos técnica e tacticamente mais evoluídas só poderão ter tempo para treinos se estiverem inscritas em federações desportivas…
Um bom slogan seria «acreditem, não precisam analisar nem reflectir!»
E porque os métodos de dopagem também evoluem, assim como os fenómenos de fraude e de corrupção, a grande questão que deveremos colocar é a seguinte: o desporto evolui num sentido de progresso para a humanidade e num sentido de desenvolvimento da civilização?
Atente-se a que dos gabinetes de relações públicas passou-se para os departamentos de ‘marketing’ e por último para os directores de comunicação… As formas de relacionamento com os consumidores do desporto foram-se modificando… Também aqui o desporto evoluiu.
Parece-nos que a evolução do desporto serve essencialmente o captar vitalício do espectador para o utilizar eternamente, para o cativar de uma forma impessoal deixando-o subjugar-se ao poder da imagem, do espectáculo e da publicidade. Criar o desejo no espectador, torná-lo crente, fazê-lo sentir que reina nesse domínio, que se tornou especialista em técnicas, em tácticas, em modelos de jogo, em constituições de equipas, em analises de faltas e sanções – quando, sem se aperceber, o desporto o está a tornar num sujeito submisso, voyeur, a fim de reforçar e melhor desenvolver “a sua aptidão para consumir, digerir, regurgitar e então reciclar ou substituir” como nos diz Marie-José Mondzain (1). E, segundo a mesma autora, «no domínio dos reinados, os espectadores formatados afeiçoam-se pela conivência, pelas cumplicidades, pelos índices identitários, pela segurança das reclusões. A verdadeira polícia é a que faz reinar o mercado quando este é o único a reinar.»
A própria evolução do desporto encontra-se refém de uma mercantilização em que, e segundo as leis do mercado, tudo é medido em euros ou em dólares – não tivesse a saída de Messi do Barcelona de ser avaliada de imediato como uma perda de receita para o clube catalão de 137 milhões de euros…
Como disse Carl Sagan (e citamos de memória), «é mais fácil descrever o destino que a viagem.»
(1) Mondzain, M-J., 2015. “Homo Spectator - ver, fazer ver”. Lisboa: Orfeu Negro.
Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.