Bem-aventurados os pobres de espírito (Artigo de Manuel Sérgio, 382)

Espaço Universidade Bem-aventurados os pobres de espírito (Artigo de Manuel Sérgio, 382)

ESPAÇO UNIVERSIDADE26.07.202315:04

Atingidos os 90 anos de idade, a vida parece-me uma viagem tão breve e tão rápida que, chegado às portas da eternidade, tenho a sensação que muito ficou por descobrir e conhecer e amar. Andei por longes terras, conheci gente de todas as raças, deslumbrei-me diante de paisagens de indizível beleza, ora coroadas pelo azul dos céus, ora beijadas pelo azul dos mares. Percorri o Brasil de Norte a Sul, com as asas dos aviões, rutilantes, a ferir-me a vista. Num tremedal de nuvens plúmbeas, também de avião, contemplei , altiva, a cordilheira andina. Fiz “cu-sky”, na serra da Estrela e nos Alpes suíços. Em Hong-Kong, num salão de chá, em mesa atrás da minha, vi assanharem-se dois chineses na sua língua estridente e fragosa.

O Doutor Jorge Carlos Fonseca, nesse então Presidente da República de Cabo Verde, em quem concorrem também qualidades eminentes de escritor, honrou-me com um convite seu, que me levou às principais ilhas do seu país. Em Dezembro de 1974, estagiei na Academia de Cultura Física de Moscovo. Muito mais havia que lembrar dos quatro continentes (não cheguei à Oceania) por que passei mas, sem a pretensão de lhe esmerilhar a alma, não escondo que amei fisicamente o Brasil, desde o primeiro contacto. E nesse abraço, mais do que fraterno, entendi alguma coisa do que me disse, um dia, tinha eu 7 anos de idade, o meu tio José, irmão de minha mãe: “Quando visitares o Brasil, vais gostar”. De facto, o feitiço envolvente da terra e das gentes brasileiras é inesquecível. Lá aprendi, lá estudei, lá ensinei, lá convivi com um amorável grupo de professores e alunos. Durante dois anos (1986 e 1987) fui professor convidado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e, nos 20 anos seguintes, frequentei o Sul da América (não só o Brasil), como júri de mestrados e doutoramentos e como palestrante em seminários e congressos vários. Nunca tive a sinistra visita de um ladrão, tanto na rua como na casa onde vivia. LI todos os romances de Machado de Assis e poesia dos muitos poetas que por lá florescem. Cantei a Bossa Nova em casa do Régis de Moraes, filósofo e um exímio pianista…

As leituras, o cinema, a tv, os relatos dos amigos não nos marcam como a presença viva dos fenómenos sociais. Era eu rapaz e ainda ouvia, na igreja da minha paróquia, que a indigência era via de acesso ao Reino dos Céus. Ora, eu também lobriguei  muita miséria no Brasil e nos países da América Latina que conheci – miséria que os políticos mais influentes tentavam explicar com divagações marginais, que nada explicavam porque as verdadeiras razões se escondiam ou desvirtuavam. Ante o sofrimento e a injustiça, vou sempre procurar, com dúvida, a política que lhes subjaz e, aqui e além, com fé, o mistério do mal, neste mundo. Rejeito, por isso, a miséria conformada, habituada, reverente, que me ensinaram na catequese, rodados mais de 80 anos: rejeito as razões dos “ricos de espírito”.

Quem são eles? São os que (assim o proclamam) dificilmente têm dúvidas e raramente se enganam; são os que julgam saber de tudo e para tudo ter a última palavra; são os que estudam pouco  porque pensam saber muito; são os que manipulam e exploram o seu semelhante e a própria natureza; são os que deitam um olhar lateral e suspeitoso, em relação a outras culturas e a outros povos, designadamente africanos e asiáticos, que não se subordinam aos ditames de uma razão eurocêntrica; são os que, arrogantes e convencidos, não querem reconhecer que esta razão eurocêntrica não passa de uma certa forma de pensamento… como outras! Aliás “os grandes vultos, os “faróis”, de que falou Baudelaire, os autores que foram alimentando, até ao século passado, o Cânone Ocidental, como lhe chamou Harold Bloom, parece terem desaparecido de vez: entre 1961, o ano em que Hemingway desistiu prematuramente de viver e 1985, o ano em que as cinzas de Orson Welles foram depositadas no fundo do poço  da quinta de Ordoñez, em Ronda, desapareceram Picasso e Stravinsky, Malraux e John Ford, Chaplin e Rosselini, Renoir e Hitchcock. E onde estão hoje os Mestres que nos inspiram, nos provocam e nos alertam?” (António-Pedro Vasconcelos, O Futuro da Ficção, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2012, p. 11).

Quem são portanto os “pobres de espírito”? São os que sabem que não sabem; são os que, com todos, tentam aprender; são os que reconhecem, contritos, os seus próprios erros e procuram emendá-los ; são os que rejeitam ficar parados em si mesmos, no que têm e no que são; pobres de espírito são os que frontalmente recusam o saber imperial, inatacável de religiosos e políticos que se julgam a voz de Deus – isto, em favor de uma consciência cética, livre, experimental… porque o Absoluto não é deste mundo! “Bem-aventurados os pobres de espírito” disse-o Jesus. Na minha vida, que já não é curta, também no futebol encontrei “pobres de espírito” que de mim se aproximaram, humildemente, e que afinal do nosso convívio mais me ensinaram do que comigo aprenderam. Vem-me à memória José Maria Pedroto: “Já percebi o que os outros articulistas desportivos querem dizer. Mas o que o meu amigo diz ainda não entendi. Quer, de vez em quando, encontrar-se comigo, para me explicar o conteúdo dos seus artigos?”. E o Jorge Jesus, decidido e calmo: “Professor, quer ser o meu treinador do treinador?”. E, após um ou outro treino, sentava-se atento a escutar as minhas despretenciosas “críticas”. E o meu querido e antigo aluno  José Mourinho, doutor “honoris causa”, pela Universidade Técnica de Lisboa, que hoje leciona o velho professor (que sou eu) que saudou os seus primeiros passos na universidade. É um dos melhores treinadores do mundo, mas não deixa de oferecer à minha velhice palavras de encantadora ternura. Fui professor do José Peseiro, colega de curso do José Mourinho, e que tem treinado futebol, por esse mundo além, e do Rui Vitória, a quem se reconhece valor para triunfar na carreira que abraçou. ´´E preciso inverter o platonismo” proclamava F. Nietzsche, ou seja, é preciso passar de uma Razão arcaica, típica de todas as ditaduras a uma razão que humildemente se reavalia. “Bem-aventurados os pobres de espírito”. De facto de “ricos de espírito” está o mundo farto…

Assisti (dia 23 de Julho de 2023) pela Sport TV, a um jogo de futebol que se disputou, no Estádio do Restelo e que terminou com a vitória do Belenenses sobre o Famalicão, por 3-2. Com orçamentos reduzidíssimos, mas beneficiando de um presidente inteligente e diligente e de um treinador jovem que é… um verdadeiro “pobre de espírito” – o atual futebol do Belenenses bem merece a admiração e o aplauso de todos os que amam (e, como no meu caso) sempre amaram este Clube de camisola azul e cruz ao peito. Falo, frequentemente, com o treinador do Belenenses, o Dr. Bruno Dias, um verdadeiro “pobre de espírito”. Após este jogo, ele fez o favot de telefonar-me. Manifestei-lhe a minha alegria por esta vitória que, francamente, me surpreendeu. Assim me respondeu: “Professor, somos uma equipa modesta, com uma vontade enorme de transcendência. Cada um dos meus jogadores sabe que não é o melhor do mundo mas, todos os dias, pacientemente, procura ser melhor do que no dia anterior. Este é o nosso segredo: eles e  eu, todos procuramos ser melhores, todos os dias”.

E, depois de uma curta pausa, ainda acrescentou: “ E continuo a estudar, pois que sei que ainda me falta muito para ser um treinador ideal”Esta é a linguagem dum “pobre de espírito”. Julga sempre que sabe pouco e não deixa nunca de procurar saber muito. Aqui está um treinador que escolheu o caminho certo. Sim, é verdade que, na alta competição (como no mais, afinal), como diria o Manuel da Fonseca: “um homem só não vale nada”. No êxito, para além do saber do treinador, há o valor dos atletas e o, alto também, nível administrativo e financeiro e médico do clube que serve. Atualmente, num clube de elite, devem predominar os chamados “trabalhadores do conhecimento”. E que sejam também, conscientemente, “pobres de espírito”.