Uma conversa séria sobre o FC Porto
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Uma conversa séria sobre o FC Porto

OPINIÃO21.11.202309:23

No discurso do adepto e do futuro presidente há uma surpresa: nunca lhes passou pela cabeça que o seu clube fosse muito isto

Não devemos rir da miséria dos outros, mas a vida tem destas coisas. Não me orgulho disso, mas também não vou fingir que registei com triste solenidade aquilo a que assisti na passada segunda-feira. Subitamente, a esmagadora maioria dos benfiquistas que eu conheço deu por si a acompanhar com especial voracidade uma assembleia geral do FC Porto, um evento que, cedo se percebeu, tinha mais câmaras no recinto do que muitos jogos com VAR na nossa liga. Horas depois de várias tentativas, já com umas quantas agressões consumadas, a assembleia geral foi abortada por falta de condições para assegurar a participação dos sócios presentes, ou talvez até a sua integridade física.

Penso que é seguro afirmar que nenhum dos meus consócios acompanhou a assembleia geral do FC Porto por querer ver debatidos os temas constantes da ordem de trabalhos, designadamente uma revisão estatutária marcada a poucos meses de um ato eleitoral com o objetivo de beneficiar os interesses da administração em funções. Bem vistas as coisas, essa é só mais uma variação de um tema familiar para os adeptos da modalidade em Portugal, habituados à proverbial opacidade. Mas nada disso interessa neste caso. O que verdadeiramente entusiasmou os adeptos foi ver a casa dos outros a arder, e não apenas com um incêndio, mas com direito a um espectáculo de pirotecnia.

Devo fazer uma confissão. Tal como outras pessoas em Portugal, também eu tenho amigos portistas. Não tentei ter uma conversa séria com eles acerca deste tema, mas, se porventura cometesse esse erro, teria antes de mais manifestado a minha repulsa pelos acontecimentos da passada semana, e a minha sincera solidariedade no combate por um futebol mais impoluto. Digo que cometeria um erro porque nenhuma conversa mais séria poderia ficar por aí. E, sim, começaria por admitir que não sou a pessoa ideal para colocar um espelho à frente de adeptos de um clube a quem não desejo coisas boas.

Para conseguir ter uma conversa séria, teria que fazer um preâmbulo para abordar vários temas, começando pela democracia do meu próprio clube, que também conta episódios lamentáveis ao longo dos anos, incluindo uma agressão do presidente a um adepto em plena assembleia geral. Teria que falar da dificuldade que é avançar com uma revisão estatutária que permitirá ao meu clube avançar e trará mais e melhor participação associativa. Teria que falar de uma relação difícil com o tema da transparência, que ainda hoje encontra espaço para melhorar. Teria que falar do longo historial de permissividade do meu clube em relação a membros das claques que facilmente poderiam ser identificados e afastados de recintos desportivos. Teria que falar, por exemplo, do regime democrático que, ao longo dos anos, permitiu dar protagonismo a algumas das figuras mais sinistras que me recordo de ver na vida pública do país. Em suma, teria que ser sincero e começar pelos problemas que tive ou tenho em casa.

Mas, ultrapassada o mito da falsa singularidade, que isto da incivilidade e falta de cultura democrática acontece a todos, teria forçosamente que falar da fina ironia daqueles que há décadas se autoproclamam bastião do associativismo e da democracia, e afinal mais não são do que patrocinadores de uma perigosa arena para quem pratica a liberdade de pensamento.

Não sei se foi a pessoa mais audível nessa noite, mas é a que melhor recordo. Um jovem portista, cá fora, fala a um canal de tv e explica que se sente envergonhado com os acontecimentos da assembleia geral. A poucos metros de distância, mais ou menos à mesma hora, um candidato à presidência do FC Porto explica que aquele é um dia que não se pode repetir. Em ambos os discursos, o do adepto e o do futuro presidente, há uma surpresa. Nunca lhes passou pela cabeça que o seu clube fosse, entre outras coisas, muito isto.

Nunca a perplexidade dos outros me causou tanta perplexidade como na noite em que vi portistas reagirem como se tudo isto fosse impossível de prever. Alguém de outro clube que não o FC Porto registou a suprema ironia do momento. Depois de 40 anos de um expediente tantas vezes tóxico, intimidatório e violento para o futebol português, bastou afinal um adepto do clube ser empurrado numa assembleia geral para os correligionários perceberem que cultura os líderes do seu clube patrocinaram ao longo de todo este tempo?

Podemos tentar ter uma conversa séria sobre este assunto, mas só se soubermos rir um pouco das fábulas ideológicas que nos permitimos aceitar como verdadeiras e íntegras, em especial no futebol, e, acima de tudo, se soubermos rir de nós mesmos. Aqui chegados, eis os factos: ao fim de 40 anos de uma forma de poder sacralizada, a democracia adquire contornos de ficção. Nesse contexto, o poder reagirá quando ameaçado, com os mecanismos de vigilância que foi implementando, e esses sempre existiram para intimidar o mundo lá fora, e não para provocar o mesmo sentimento aos seus. É aí que está o choque, mas a história ensina-nos estas coisas. Ao poder, interessa antes de mais a sua própria manutenção.

A perplexidade dos portistas em relação a um adepto agredido e intimidado apenas por fazer ou dizer aquilo que pensa só será proporcional à perplexidade de um presidente, que, ao longo de 40 anos, nunca imaginou que os seus adversários pudessem ser tratados de outra forma, pelo menos até este dia em que encontrou um adversário com as mesmas cores vestidas. Aí reside a finitude de um falso democrata.