Um ideal sincero e puro

OPINIÃO26.04.202206:30

A vitória de ontem deve encher-nos de orgulho, mas é um alerta para os responsáveis pelo presente e pelo futuro do Benfica

Avante, avante p’lo Benfica,
Que uma aura triunfante Glorifica!
E vós, ó rapazes, com fogo sagrado,
Honrai agora os ases
Que nos honraram o passado!

Félix Bermudes 

É coincidência que a conquista da primeira Youth League da história do Sport Lisboa e Benfica, e o regresso do nosso futebol a uma conquista europeia, tenha acontecido no dia 25 de Abril, mas recuso-me a enjeitar o acaso. Não consigo dissociar a vitória estonteante e categórica do dia em que um país celebra o seu dia inicial inteiro e limpo, como escreveu Sophia de Mello Breyner. Futebol e política são quase sempre uma combinação desaconselhável, mas que se lixe. Neste caso vou aventurar-me sem medos. À hora em que se celebrava 48 anos de liberdade e as conquistas da revolução dos cravos, os nossos rapazes, com fogo sagrado, cumpriam as palavras de Félix Bermudes, escritas em 1929 para o hino do clube e censuradas pelo estado novo.
Honraram, e de que maneira, os ases que nos honraram o passado. Quantas vezes vimos uma equipa ganhar por 6-0 numa final europeia? Esta é fácil. Não vimos. Os miúdos apresentaram-se em campo do tamanho daquilo que queriam ser, começando o jogo a ganhar e só parando quando o árbitro apitou para o final. Mais jogo houvesse e mais golos teriam marcado. Qualquer equipa do Benfica que avança para uma final com este destemor perante o seu adversário, sedenta de vingar o historial de finais perdidas na prova, indiferente à maldição que tantos recordam nestes dias, merece ser celebrada e tornada um exemplo. Ninguém espera que todos os jogos sejam assim, mas é exatamente isto que os adeptos querem e é o que qualquer equipa do Benfica deve trabalhar para chegar a este patamar de qualidade e de resultados - e tudo fazer para lá continuar, sempre.
Devemos aspirar a essa grandeza porque é fundamental podermos falar de um passado no Benfica que se encontre mais presente na nossa memória. Por muita que a história e a sua implantação no país e no mundo façam do Sport Lisboa e Benfica a maior instituição portuguesa, essa grandeza tem de ser reafirmada. Só assim o Benfica se torna maior, e não há lirismo nenhum nisto. A vitória de ontem estabelece definitivamente a academia do clube como a melhor do mundo. E não me refiro aqui aos proveitos financeiros, ainda que esses também façam parte desta história. Falo mesmo da capacidade de fomentar o talento dos miúdos do Seixal consistentemente, ao longo de muitos anos, à margem do que acontece com o futebol sénior. Esta é também uma vitória de muita gente que trabalha na formação para colocar o Benfica no topo. Não conheço cada um deles, mas sei que só se chega a todas estas finais europeias se houver gente competente a trabalhar no clube, dos protagonistas aos muitos funcionários anónimos que garantem que estes rapazes têm as condições de que precisam para vencer e continuar a evoluir.
Mas o grande feito de ontem não deve ser entendido como um fim. É antes o início de uma história. Estes miúdos merecem celebrar e não é pouco, mas há muitas questões suscitadas por esta vitória. Que futuro podemos - nós e eles - esperar? Por um lado, recomenda-se uma gestão de expectativas prudente. Se tomarmos como referência aquilo que conhecemos sobre o modelo da formação e a ascensão à equipa principal, sabemos que maioria destes atletas irá acelerar rumo a uma nova etapa que deverá envolver primeiro a equipa B, onde se espera que a maioria faça uma longa série de jogos até atingir níveis que permitam jogar na equipa principal.
É isso que tem acontecido até aqui, mas apetece perguntar se essa é mesmo a única forma de evoluir dentro do futebol sénior. Apetece também perguntar se a aposta nos jovens será continuada, se o Seixal será finalmente a verdadeira base primordial de recrutamento para a equipa principal; no fundo, saber se seremos capazes de criar as condições para que também os jovens tenham condições de escrever novas páginas na história do clube. Não tem sido sempre assim. Não ignorando que o Benfica é um clube tendencialmente vendedor, é preciso antes de mais perceber como se pode criar talento que engrandeça o clube e não apenas as suas finanças. E basta de tratar esta exigência como um lirismo. O pai da academia do Seixal - Luís Filipe Vieira - apareceu ontem para, de forma deselegante, dizer que o atual presidente Rui Costa não tem grande mérito nesta conquista (e com isso colocar mais o Benfica nas notícias por motivos que não dignificam o clube). Eu, que não sou conhecido pelos elogios a Vieira, consigo até concordar com a sua avaliação. É verdade que esta vitória é essencialmente dos treinadores da formação e dos jogadores. Aliás, mesmo passado todo este tempo, consigo até reconhecer que Vieira terá mais mérito na conquista de ontem do que Rui Costa. Mas ficamos por aí em matéria de dívidas de gratidão, até porque há muito para condenar. Veja-se tudo o que Vieira fez com esse Seixal, em especial no seu último mandato: uma mão cheia de decisões erráticas e eleitoralismos que não colocaram a competitividade e os títulos em primeiro lugar. Um défice de competência gritante na conjugação dos interesses da formação com os interesses do futebol sénior. Uma obsessão com os negócios e muitas relações questionáveis nesse meio. Tudo menos aquilo que interessava ao clube. O Benfica não é um entreposto para presidentes e não deve ser a Autoeuropa do mercado futebolístico. É um clube que permite a milhões de pessoas sonharem todos os dias com dias como o de ontem. Se não se fizer tudo para repetir esses dias, para que serve o Benfica então? Aliás, apetece dizer que, depois de finalmente termos ultrapassado a maldição de Béla Guttmann, temos agora de superar a maldição dos agentes de jogadores e demais intermediários.
Está aqui uma oportunidade extraordinária (mais uma?) para virar a página. O que está a ser feito para que assim seja? O treinador, se for de facto Roger Schmidt, terá a motivação para enquadrar estes miúdos na sua ideia de jogo? Chega com essa ambição de os colocar em primeiro lugar ou em igual lugar de importância face a outros atletas do plantel? Que combinação de jovens e talento consolidado seremos capazes de criar na próxima época? O que estamos a fazer para adaptar o rendimento físico dos atletas a essas necessidades? E, que corte com o passado - uma avaliação muito fria da qualidade deste plantel - estamos dispostos a fazer? Um planeamento lacónico e ziguezagueante vai trazer os resultados que já conhecemos, que, no caso destes jovens, termina com metade deles emprestados a meia Europa. Podemos chorar o que quisermos. Se não tomarmos decisões corajosas, se não assumirmos que o futuro nos pertence, não vai haver newsletter que nos salve.  
Já todos conhecemos essa história. Queremos outra. Esta pode começar com um projeto que nasce verdadeiramente no Seixal. Perguntem aos adeptos o que preferem: um Benfica com muitos lucros e mais de 3 anos sem conquistar um título, ou um Benfica com mais risco financeiro que jogar à bola, que nos enche de orgulho e leva tudo à frente?  
O paralelismo com o 25 de Abril é bonito, mas Portugal já viveu e colheu os frutos da sua revolução. O momento do Benfica é outro. Não podemos dobrar a história para nos fazer a vontade. O facto é que a revolução já foi anunciada no clube várias vezes e teima em não chegar.
A vitória de ontem deve encher-nos de orgulho, mas, mais do que a madrugada que esperávamos, é um alerta para os responsáveis pelo presente e pelo futuro do Benfica. O mais importante repto pela definição de um projeto radicalmente transformador liderado por esta direção, não veio das colunas do jornal, não veio das redes sociais, não veio dos comentadores televisivos, e não veio dos adeptos. Chegou diretamente do relvado, pelo talento extraordinário dos novos campeões europeus do Benfica. Marcaram 6, encantaram a Europa, tornaram o Benfica maior, e demonstraram que o futuro pode ser deles. Hoje são os heróis de Nyon. Agora é preciso fazer deles ídolos. Romantismo o tanas. Essa é mesmo a razão de ser do Benfica, desde sempre. Os versos de Félix Bermudes explicam: Olhando altivo o seu passado/Pode ter fé no seu futuro/Pois conservou imaculado/Um ideal sincero e puro.