Um Benfica reencontrado, um FC Porto desfigurado
'Selvagem e Sentimental' é o espaço de opinião semanal de Vasco Mendonça, adepto do Benfica
Os anos passam e continuo a guardar esta história. É um dos muitos exemplos que fazem de José Mourinho uma figura sem paralelo no futebol mundial. Estamos em agosto de 2003 e o FC Porto tinha acabado de perder a Supertaça Europeia frente ao Milan. Mourinho, sabendo com quem jogaria a seguir, não hesitou: «Estamos tristes, mas alguém vai ter de pagar a fatura. Vai ser o Sporting.» Assim foi. O Sporting acabou goleado 1-4 pelo FC Porto e o então jovem José Mourinho continuou a criar a sua aura, confirmada ao longo dos anos seguintes por uma série de acontecimentos que o próprio fez questão de prever.
Bruno Lage não ousou ter a mesmo confiança e arrogância, mas soube interpretar o momento pós-Munique quando afirmou, na antevisão do jogo contra o FC Porto, que esperava uma reação à Benfica. A noite de domingo não podia ter sido de outra forma. Há jogos em que se torna fundamental que as circunstâncias nos relembrem a nossa identidade. Entre adeptos, podemos ter longas discussões sobre aquilo que nos define, mas concordamos quase sempre acerca daquilo que não somos.
É bom que estes consensos se formem entre treinadores de bancada, mas é tão ou mais importante que sejam afirmados por quem está dentro de campo. A ciência diz-nos que falta oxigénio no cérebro após a prática intensa de exercício físico, mas não faltou lucidez a Di María depois de 88 minutos a jogar, mais uma vez, como se fosse a primeira. Disse tudo. Elogiou a exibição da equipa e reconheceu a importância de reagir ao jogo menos bom de Munique. Nas palavras de Di Maria, «não fomos nós». Explicações simples para problemas complexos são uma marca habitual em quem sabe muito, e Di María sabe. Sabe de futebol e sabe o que quer um Benfiquista depois de ver a sua equipa encolhida. Quer que o próximo pague a fatura. Assim foi.
Lage não é conhecido por exibir a arrogância ou a confiança de Mourinho, mas este domingo soube levar a água ao seu moinho e conquistar o capital de confiança de que precisava para passar à fase seguinte desta época. O treinador esperava uma reação à Benfica e acredito que a exigiu aos jogadores. Talvez a prudência aconselhasse um jogo em casa frente a uma equipa da segunda metade da tabela, mas felizmente o calendário era outro. A equipa entrou em campo para defrontar um adversário historicamente difícil e tornou o jogo historicamente fácil. Segundo uma velha máxima militar, nenhum plano sobrevive ao primeiro contacto com o inimigo.
O treinador do FC Porto sentiu isso de forma dolorosa, ao ver exposta a inferioridade da sua equipa em quase todos os momentos do jogo. Não houve trauma nem memória que lhe valesse. Uma equipa jogou muito melhor do que outra, teve mais fome, mais agressividade, mais bola, mais tudo, e por isso venceu justamente. Sim, foram só três pontos, mas foi um pouco mais do que apenas uma vitória. Vítor Bruno, treinador do FC Porto, sabe isso, ou não teria descrito o estado de alma da sua equipa como uma «agonia». Em nome da rivalidade clubística, agradeço-lhe o uso desta palavra. Brindemos à agonia dos derrotados!
E foi assim que chegámos ao melhor desfecho possível, que vale mais do que três pontos. Na intersecção entre a necessidade de uma «reação à Benfica» e o adversário conhecido por ser o mais difícil de ultrapassar, aconteceu uma coisa bonita de se ver. Dias depois de jogar em Munique numa versão profundamente descaraterizada, tida por muitos adeptos como imprópria do clube, a equipa do Benfica pareceu ter percebido o que lhe aconteceu e fez o mesmo ao FC Porto. Diminuiu o seu rival de sempre ao ponto de o tornar uma caricatura do espírito e da raça tantas vezes apregoada, frequentemente para mascarar a postura anti-desportiva. O FC Porto chegou à Luz convencido do seu destino. Saiu de lá desfigurado e com rumo incerto.
A equipa do Benfica fez tudo isto sem ceder uma vez que fosse à tentação de fazer aos outros aquilo que não gosta que lhe façam. Jogou à bola e limitou-se a tal. Quando percebeu que o seu adversário caíra e estava atordoado, fez aquilo que o jogo e as bancadas exigiam. Não desperdiçou a oportunidade de vergar ainda mais o adversário e chegar à goleada. Só parou quando o árbitro apitou pela última vez.
Moral da história? O Benfica manteve-se fiel a uma identidade e tirou o melhor partido das armas ao seu dispor. Foi categórico. Por via desta contundência, fez o FC Porto questionar a sua própria identidade. Qualquer vitória no jogo de domingo teria sido saborosa, mas nada é melhor do que sermos quem somos e vencermos por isso. É assim que deve ser, sempre. Bem sei que vivemos num país livre, razão pela qual existem pessoas que, munidas de um realismo algo entristecedor, chamam a esta ambição romantismo. Estão no seu direito. São pessoas que preferiam ter empatado em Munique sem rematar à baliza. Aos críticos do romantismo, respondo com a história que fez do meu clube o gigante que é: seja com quem for, seja onde for, o Benfica deve vencer ou morrer a tentar. E só esta última parte pode ser descrita como romantismo, porque o Benfica é eterno. Se não concordam comigo, ouçam o Di María. Estaremos sempre mais perto de vencer se seguirmos a máxima do melhor em campo. Basta sermos nós. Não conheço melhor romance.