Um Benfica à medida do Bernardo

OPINIÃO22.03.202206:00

Bernardo Silva disse tem saudades da família e do Benfica e que se pudesse voltava daqui a um ou dois anos

EM semana de um saboroso regresso aos quartos de final de uma Liga dos Campeões e de sprints estonteantes de uma baliza à outra que os próprios adeptos festejaram pelo protagonista, houve uma coisa que me entusiasmou tanto ou talvez mais do que tudo isto. Foram as palavras de Bernardo Silva em entrevista ao Canal 11, que ecoam na minha cabeça há vários dias. Explica Bernardo que tem saudades da família e do Benfica e que se pudesse voltava daqui a um ou dois anos, não apenas porque gostaria de voltar a jogar no Benfica mas porque tem saudades da sua família e de viver em Portugal.
 

NÃO conheço benfiquistas que não se tenham entusiasmado com as suas palavras. É fácil perceber porquê. Este rapaz prodigioso é um dos exemplos mais talentosos de um atleta formado no Benfica, o que só por si já o valoriza muito. Como se isso não bastasse, o Bernardo é também uma das pessoas mais bem formadas que existe no nosso futebol. Tem um discurso articulado, civilizado, e a dose certa de humildade. Pensa pela própria cabeça e consegue colocar isso em prática dentro e fora do relvado. Não o reconheço pelas extravagâncias publicadas nas redes sociais, mesmo sabendo que essa discrição o prejudica, como referiu o seu treinador há alguns dias, explicando que o Bernardo nunca será Bola de Ouro porque não tem redes sociais. Não sei se é exagero, mas sei o que Pep quis dizer e parece-me certeiro. Refiro-me a ele como o Bernardo porque ele tem sabido manter os benfiquistas por perto, e porque tem demonstrado ser um dos nossos como poucos, mesmo tendo deixado o clube de uma forma prematura. Nele não existe ressentimento, só um amor desinteressado pelo Benfica.
 

ASSIM que vi a entrevista, e desde então, dei por mim a imaginar o que significaria o seu regresso algures nos próximos anos, ainda em idade de poder contribuir de forma decisiva para o jogo da equipa. Mas, mais do que isso, dei por mim a pensar no que seria necessário para fazer regressar alguém como o Bernardo e creio ter chegado a uma conclusão válida: que um Benfica capaz de persuadir o Bernardo Silva a voltar para casa poderia ser muito mais do que a subjugação de um projeto desportivo a uma estrela. Estaria, penso eu, mais perto de ser o Benfica a que devemos aspirar. E não tem que começar a ser construído quando ou se o Bernardo voltar. Pode e deve acontecer o quanto antes. 
 

P RIMEIRO precisamos do mais importante: maior capacidade financeira. Nem o Bernardo virá jogar de graça nem ele virá jogar sozinho. Precisaríamos de uma equipa convergente com os objetivos do Benfica e de um Bernardo. Costuma dizer-se que somos do tamanho dos nossos sonhos, o que é verdade até esses sonhos esbarrarem no orçamento da SAD. Importa por isso perguntar: qual é o futuro financeiro que permite ao Benfica chegar mais longe? Uma capacidade de endividamento superior que permita correr o risco de um projeto com ambição internacional? Um modelo desportivo assente numa crescente valorização dos ativos formados no Seixal? A internacionalização do modelo do Seixal que permitiria franchisar a formação, criar clubes-satélite a nível global e multiplicar os ativos? A participação em competições supranacionais? Uma marca mais internacional que seja capaz de monetizar o interesse nos países de língua portuguesa, entre as comunidades lusófonas, e em novas geografias? Uma SAD aberta à entrada de novos investidores? Novas formas de financiamento, nomeadamente através de novas moedas e ativos digitais? Tem-se falado muito sobre centralização de direitos televisivos, mas, seja qual for o resultado dessa negociação, não chegará para conduzir o Benfica a um patamar superior. Novos objetivos pedem novas soluções e novas formas de fazer as coisas. Não se pode esperar um Benfica diferente se tudo ou quase tudo permanece igual.
 

«Bernardo tem sabido manter os benfiquistas por perto», defende Vasco Mendonça

G ARANTIDA a capacidade financeira, importaria falar sobre o perfil de treinador e a respetiva ideia de jogo. Ainda que este exercício seja altamente especulativo, neste caso importa olhar para a próxima época e não para daqui a dois ou três anos. Já perdi a conta aos treinadores que têm sido apresentados na imprensa como opções para o Benfica na próxima época. Parece-me razoável argumentar que as ideias de Veríssimo não serão a melhor solução para o médio e longo-prazo do Benfica. Ainda que a equipa atravesse uma fase positiva, são evidentes as dificuldades do Benfica em ser uma equipa dominadora ou sentir-se confortável quando tem a bola. Os adversários mais destemidos têm dominado territorialmente, e os mais pequenos continuam a expor a nossa dificuldade em ataque posicional. É um facto que temos vencido mais jogos e, quem sabe, talvez façamos mais algum estrago na Europa, mas é difícil ver neste tipo de futebol a dimensão identitária que um Benfica deve assumir.
 

POR outro lado, duvido de muitos dos nomes portugueses que têm sido sugeridos. Não obstante a qualidade desses treinadores, parece-me que já fomos por aí várias vezes e isso não nos deu a dimensão desejada. Também aqui o Benfica deve procurar algo novo. Resumidamente: uma combinação de competência, liderança, capacidade de comunicar, humildade, e, se possível, algum desinteresse em relação a todas as tramas do nosso futebol, ou, no mínimo, alguma vontade de as ignorar. Tem que saber combinar o talento da casa e o talento de fora, mas fazê-lo de uma forma sistemática e não para responder a anseios exteriores. O próximo treinador deve compreender essa missão desde o primeiro dia e terá de montar um plantel que seduza e entusiasme alguém como o Bernardo, mas que consiga agregar valor de forma indiscutível através da formação (e também a formação pode e deve descobrir como ser cada vez melhor).
 

UM outro treinador terá que demonstrar tudo isto e cultivar uma ideia de jogo em que o Benfica procure sempre ser dominador e pratique futebol ofensivo de alta intensidade, no fundo, o jogo jogado que permite à marca Benfica singrar e tornar-se mais atrativa para um público alargado. Um outro treinador terá de saber comunicar com os adeptos e garantir que os jogadores compreendem a importância dessa relação quando ganham e quando perdem. Que compreendem e respeitam o Benfica, não três dias por semana mas sempre. Por último, tem que ter uma coisa absolutamente fundamental: muita fome de vencer e de chegar mais longe, muita vontade de provar que é grande. Tenho dificuldade em ver todas estas qualidades nos nomes que têm sido sugeridos. Por tudo isto veria com muito interesse a opção por um treinador estrangeiro. Também nisso o Benfica poderia mudar de ares e ter vistas mais largas, se de facto pretende resultados diferentes.  
 

P OR último, a instituição. Este exercício de um Benfica à medida do Bernardo pressupõe muitas coisas, mas talvez a mais importante seja mesmo esta: que exista no clube a capacidade de compreender a encruzilhada em que nos encontramos, e que daí nasça uma vontade consequente de apontar e percorrer caminhos novos. O Benfica é uma imensidão de história, bem sei, mas só voltará a fazer história se for capaz de se reinventar e de se ajustar a tempos diferentes. O que vivemos nestes últimos dias foi bom e faz-me feliz, mas é uma pequena parte daquilo a que devemos aspirar. Aqui chegados, é preciso muito mais. O momento não pede timidez nas palavras ou nos atos, não pede subserviência nem aparente desmotivação. Pede ousadia, irreverência, pede que sejamos inventivos, pede a quem lidera a instituição que demonstre a tal fome de vencer, que sonhe como nós benfiquistas e trace, de uma vez por todas, um novo plano para chegar a um sítio de onde nunca devíamos ter saído. É tudo isto que espero ver no Benfica, muito mais do que até aqui. No dia em que isso acontecer, suspeito que o Bernardo se juntará a nós.