Treinador me confesso
Miguel Nunes/ASF

OPINIÃO Treinador me confesso

OPINIÃO18.11.202311:28

«Pretendi ter impacto nos outros, falar para que me ouvissem e ouvir para que pudessem falar»

Uma confissão representa quase sempre a tentativa de partirmos para outra. Como que um ato de limpeza de arquivo tendo em vista iniciar algo de diferente para melhor.

Permitam-me, assim, que aqui me confesse como o treinador profissional de basquetebol que fui, e o consultor de empresas na área comportamental que ainda hoje sou.

Naturalmente, faço-o de modo conforme com o que me foram permitindo as experiências vividas enquanto aluno do ensino primário, secundário e universitário, jovem praticante de desporto, militante partidário, fuzileiro naval, professor, marido, pai, avô, etc.

Verdadeiros anos de luta em defesa de uma tese segundo a qual ser treinador, além de implicar um saber ser e um saber estar muito próprios, teve sempre implicações sociais e políticas muito para lá do desporto.

Uma prática diária extremamente exigente e a construção, ao longo de mais de 50 anos, de uma base teórica, verdadeiro tronco comum que designo hoje como ‘Pensar e Intervir como Treinador’. 

Mas atenção! Não foi suficiente durante esse período simplesmente querer afirmar-me individualmente enquanto cidadão e profissional.

Mais do que do anúncio verbal dessa intenção, necessitei de determinadas atitudes e comportamentos.

Pretendi ter impacto nos outros, falar para que me ouvissem, e ouvir (com maior dificuldade) para que pudessem falar.

Aprendi, com a experiência dos anos, a fazer da realidade que me rodeava a verdadeira escola da vida onde fui buscar os modelos e as referências de que carecia.

Fomentei quanto possível um constante apelo ao respeito pela cultura e pelos valores fundamentais que devem presidir na vida de qualquer profissional. Verdadeiro código de honra destinado a juntar pessoas e coletivos ao redor de objetivos e interesses comuns. 

Tentei em paralelo liderar jogadores e equipas de modo a que a minha autoridade fosse gradualmente mais reconhecida que imposta, e pugnei pela criação de um espírito coletivo, um ser e um sentir baseados na preocupação com os outros.

Como pessoas e seres humanos que somos, para aderirmos e lutarmos pela concretização do sentido que procuramos dar à nossa vida, precisamos de estar envolvidos numa estratégia clara onde se percebam os objetivos a atingir e as regras de vida coletiva a respeitar; como também precisamos de nos sentir responsabilizados na respetiva concretização, principalmente ajudando a que o todo que nos envolve seja maior que a soma das partes.

Quando assim não acontece, naturalmente desmobilizamos, ficando cada um a pensar mais em si que nos interesses coletivos.

Teses simples e sobre cujos significado e necessidade estamos todos de acordo.

Mas que, ao ser-nos exigido que as apliquemos como hábitos, automáticos e inconscientes, rapidamente percebemos que uma coisa é dizer, outra coisa é fazer de modo coerente, aquilo que permita sermos confiáveis.

Daí salientarem-se ao longo dos tempos, questões como sejam:

— O simples facto de falarmos habitualmente com bastante facilidade e conhecimento acerca do que precisamos fazer para que o todo seja maior que a soma das partes, será que é suficiente para que a realidade da maioria das equipas e organizações de que fazemos parte mude consoante as necessidades?

— Quantas vezes concluímos que não basta saber e que é preciso fazer?

— É hoje consensual que as mudanças sociais e económicas, entretanto acontecidas, nos forçam a também alterarmos os nossos comportamentos habituais; é, ou não, também fundamental que mais do que a procura de soluções cosméticas correspondentes a modas do momento, se impõe alterar a nossa forma de pensar e intervir? 

— Será que mobilizar a motivação de todos aqueles que trabalham num determinado projeto comum, significa tão só acenar com estímulos financeiros ou punições disciplinares? Ou, bem pelo contrário, se torna necessário entender que, acima de tudo, a verdadeira adesão motivada dos cidadãos em geral só se processará a partir do momento em que eles compreendam e assumam responsavelmente o projeto coletivo?

— Para quando se verificará a humildade suficiente de quem lidera países, empresas, equipas, etc., para que a dúvida sistemática nunca se deixe superar pelas certezas definitivas? 

Para que o respeito pela individualidade e pelas consciências se sobreponha sempre à ortodoxia? O espírito crítico vença a propaganda? O progresso e o desenvolvimento sejam as metas a atingir e o conformismo o inimigo a abater?

Conforme as respostas a estas questões, assim a mudança pela qual vale a pena lutar acontecerá ou não.

A mudança de que falo, tem acima de tudo que ver com os nossos comportamentos e competências, no âmbito da capacidade de comunicar com eficácia e delegar funções, tal como da capacidade de enfrentar situações imprevistas, antecipar e gerir conflitos, definir prioridades, etc.

Preocupam-se por isso (e muito!), os sinais evidentes de estagnação e regressão entretanto verificados no meu país, agravados pela tentação de transformarmos as nossas aprendizagens em algo de definitivo e acabado.

Urge perceber que o receio que nos provoca a incerteza do desconhecido nunca deve ser maior que a vontade de nos adaptarmos às novas realidades com que vamos deparando, sendo fundamental que tenhamos uma única certeza e aceitemos um enorme desafio; a certeza de que não devemos ser meros aplicadores das receitas e das modas da época; e o desafio de estarmos à altura de mudar, nós próprios, para que haja a mudança global pretendida.

Cabe ainda no âmbito desta confissão o motivo que me conduziu nestes últimos anos à investigação do comportamento humano. Como sentimos afinal? Afinal o comportamento treina-se?

Ao percebermos algo, fazemo-lo numa clara relação histórica entre passado e presente, relacionando a perceção com a atitude corporal e entendendo a experiência do corpo como uma experiência sensível através da qual se desenvolvem os nossos sentidos. 

O que, naturalmente, reforça a importância dos conceitos de ‘aprender a fazer, fazendo’ e de ‘treinar como se joga’ contidos na metodologia de treino na área comportamental que designámos como ‘Pensar e Intervir como um Treinador’.

Temos afinal um corpo próprio, vivido e sensível que, a partir do nosso sistema sensorial se centra no experiencial enquanto verdadeira síntese da perceção e do movimento.

Uma verdadeira circularidade entre processos corporais e estados neuronais (entre corpo e mente!), centrada numa total complementaridade dos nossos sentidos e do mundo, e em que o corpo, a experiência do movimento e a perceção/consciência emergem numa profunda relação circular entre o corpo como um todo e a totalidade do meio ambiente.

No fundo, o corpo (vivido), a perceção/consciência e a motricidade (sistema motor), encarados globalmente e numa interação e complementaridade constantes, revelam que o comportamento é um modo de sintonização com tudo o que nos rodeia.

Corporal e dependente de experiências sedimentadas anteriormente e estando, por essa mesma razão, muito para além da simples destreza mental, técnica, morfológica ou fisiológica. Numa correlação constante entre corpo e meio ambiente, corporalizada e em situação, através de atitudes e comportamentos cujos contextos têm sempre sentido, emoções, sentimentos.

Também num sistema sensorial e motor (esquema corporal) e numa perceção intermodal (em que os nossos sentidos se complementam), incorporando posições e movimentos, adquirindo hábitos, e movimentando-nos numa constante complementaridade entre visão e proprioceção e numa circularidade entre corpo e meio ambiente.

Afinal, habitamos o meio ambiente em que nos inserimos projetando-nos como um todo e percebendo o que nos rodeia através do nosso comportamento (motricidade), carregado de intencionalidade e significado.

Movemo-nos e relacionamo-nos sempre com um determinado significado corporal prévio, manifestando uma consciência corporalizada aberta a tudo e a todos. Adquirimos um saber do corpo e humanizamo-nos através das nossas relações intersubjetivas e inter corporais.

Já agora, a tão famosa questão de todos gostarmos de nos sentir possuidores da verdade; que deve trazer consigo igual preocupação com a necessidade de reconhecermos que cada um de nós está longe de ser suficientemente isento relativamente ao que motiva as nossas opiniões.

As nossas experiências de vida anteriores, tal como as crenças e valores adquiridos, pesam sempre (e de forma bem evidente!) e o que dizemos e defendemos nesses momentos é tão só o que pensamos sobre esse assunto. Nada mais que isso.

Cumpre-nos, assim, contrariar esse verdadeiro culto que vai crescendo, auto considerando-nos os detentores da verdade. Sejamos naturalmente capazes de experimentar e refletir quanto baste sobre tudo o que nos envolve e acontece. Também intervenientes o suficiente para ser reconhecidos como cidadãos ativos e responsáveis.

Mas estejamos igualmente bem conscientes que cada um daqueles com quem nos relacionamos terá a sua opinião eventualmente diferente da nossa; e que só através da construção continuada de fundamentais consensos seremos capazes de ajudar a construir uma sociedade mais justa e desenvolvida.

Conclusão, treinador me confesso totalmente aberto a uma continuada experiência sensorial aberta ao mundo exterior e interpretada através de uma fundamental filosofia dialética de existência.