Tempo útil e tempo bem empregue
Parece haver finalmente uma outra história para escrever esta época. É uma segunda oportunidade que não podemos desperdiçar
Falamos muito de tempo útil de jogo, mas raramente falamos de tempo bem empregue. Talvez seja melhor assim. Se o fizéssemos, talvez nos lembrássemos mais vezes de que todos vamos morrer um dia. Não sei se ajuda ver as coisas dessa forma, mas às vezes dou por mim a pensar que o tempo despendido a ver jogos de futebol absolutamente esquecíveis poderia ser melhor usado em outras atividades mais enriquecedoras do espírito e do intelecto.
Há exceçpões a esta reflexão. Refiro-me ao excelente jogo de futebol a que assistimos em Braga este fim de semana. Não há um único adepto, independentemente da preferência clubística, que possa dizer o contrário. Uma pessoa sabe que está a ver algo especial na liga portuguesa quando exercita a memória para se lembrar de 90 minutos iguais e não consegue. Por outro lado, se fizer exatamente o mesmo exercício utilizando a liga inglesa ou a liga espanhola, terá apenas que recuar algumas horas para se lembrar de um jogo ao mesmo nível. Deveria fazer-nos pensar, mas não demasiado, ou um dia destes ainda decido ver apenas ténis.
Não vou mentir. Ajuda muito que o Benfica tenha marcado cedo e levado os 3 pontos, mas não elogio o jogo de domingo passado apenas pela parte que me interessa. Os meus textos costumam ser dedicados quase totalmente ao Benfica, mas às vezes é preciso acomodar quem merece. Deve ser dito com franqueza que há poucas coisas mais interessantes nesta liga, futebolisticamente falando, do que um Sporting de Braga a perder. Não é uma provocação. Na verdade, é o melhor elogio que posso fazer a uma equipa que sofreu golos em todos os jogos e marcou em todos, excepto nesta última jornada. Os adeptos bracarenses sabem que essa situação tem sido quase sempre revertida. E os números não se ficam por aí. O Sporting de Braga é também uma das equipas com maior percentagem útil de tempo de jogo ao longo das últimas 5 épocas, segundo dados disponíveis no website da Liga de clubes. Poucos são os clubes em Portugal que podem falar sobre o lugar comum do futebol positivo com as estatísticas e a qualidade para o demonstrar. Não sei até onde pode chegar esta equipa, mas sei que obriga todos os seus adversários a trabalhar muito.
Foi uma semana feliz para o Benfica, que conquistou pontos a dois adversários, isto depois de uma vitória fundamental na Áustria. Não é como começa e está muito longe de acabar, e algumas insuficiências ou inconsistências do plantel ainda lá estão, mas há muita coisa positiva a destacar nestes últimos dias. A equipa está mais esclarecida e equilibrada, tanto em posse quanto a fechar o seu meio campo. É seguro dizer que este Benfica é outro, diferente do melhor Benfica da época anterior, mas essa talvez não seja a forma mais justa de olhar para a equipa. Houve momentos desta época em que senti a equipa e o treinador acusarem o peso da expectativa, mas aos poucos - finalmente - essa bagagem emocional parece tornar-se mais leve e o Benfica 23/24 parece libertar-se dos complexos de inferioridade. Roger Schmidt, a quem pareceu faltar assertividade ou acerto em diferentes momentos esta época, parece mais convicto do que pretende da equipa.
Os melhores jogadores deste plantel parecem estar a subir de forma e alguns até se vão adaptando às funções de recurso que lhes foram destinadas. Até Arthur Cabral, que parecia destinado a uma saída sem glória, parece agora reabilitado para a sociedade. Quanto à atitude da equipa, que chegou a ser questionada, só mereceu elogios nestes dois últimos jogos. Tenho alguma dificuldade em compreender quando um treinador do Benfica explica, de forma aparentemente resignada, que o Benfica não pode ganhar sempre, mas compreendo um pouco melhor se me disser que o Benfica não pode ganhar sempre da mesma forma, e que nem todos os jogos são passeios ou se resumem apenas ao nosso poderio ofensivo.
Foi aliás isso que mais gostei de ver nos últimos dois jogos. Ao longo de 180 minutos, o Benfica passou por uma experiência intensiva que poderia confirmar ou desmentir as assobiadelas dos adeptos há pouco mais de uma semana. No entretanto, esta equipa esteve fora das competições europeias, voltou a entrar nesse jogo, esteve novamente fora das competições europeias, nunca desistiu e terminou de forma épica garantindo uma presença nas competições europeias que vale muito mais do que parece, tudo isto a jogar fora de casa.
A mesma equipa descansou 4 dias, foi a um dos estádios mais difíceis da liga portuguesa, marcou cedo com um golo de um avançado nórdico que há uns tempos parecia destinado ao insucesso, foi obrigada pelo seu adversário a sofrer, teve de jogar mais encolhida do que seria desejável, com a humildade que o momento exigia, e aproveitou para descobrir de uma vez por todas que tem um novo guarda-redes de classe mundial. No final, saiu de Braga com mais 3 pontos e conta apenas vitórias frente aos quatro primeiros classificados da liga. É verdade que não vamos ganhar sempre por quinze a zero, muito menos em jogos de elevado grau de dificuldade, e também é evidente que este Benfica não é o mesmo de há um ano e meio, mas a vontade de ganhar está bem presente e o melhor momento de forma deste plantel parece estar próximo. Ao tempo útil juntou-se o tempo bem empregue. Agora junte-se a isso a oportunidade de corrigir os desequilíbrios do plantel dentro de poucos dias e o cenário pode tornar-se gradualmente mais animador. Parece haver finalmente uma outra história para escrever esta época. É uma segunda oportunidade que não podemos desperdiçar.