Somos do Benfica e isso nos envaidece
Se olharmos para Benfica, FC Porto, Sporting ou SC Braga, os pontos de paridade têm superado os pontos de diferenciação
Éfácil resumir o futebol português a uma série de maus exemplos que, no essencial, aproximam os clubes mais do os distinguem. Se olharmos para Benfica, FC Porto, Sporting ou Sporting de Braga, entre outros, os pontos de paridade têm superado os pontos de diferenciação ao longo dos últimos muitos anos. Dirigentes dos clubes, umas vezes os treinadores, outras vezes os jogadores, muitas vezes os adeptos, têm, cada qual à sua maneira, revelado o pior de si. Vou tentando registar isso com a imparcialidade possível, dirigindo as críticas ao meu clube sempre que entendo justificar-se, e isso já aconteceu muito mais vezes do que gostaria. Mas também sei reconhecer, obviamente, que existe na génese de cada uma das tribos territórios que as distinguem e afirmam. Histórias fundadoras que determinam o lugar que cada um desses clubes, e a respetiva tribo, ocupam no mundo, e que devem ser assumidas com a devida legitimidade.
Há uma semana escrevi aqui sobre o diretor de comunicação do Futebol Clube do Porto porque entendi que a sua defesa de um suposto ataque a Mehdi Taremi era uma tentativa de intoxicar o espaço mediático — mais uma de muitas ao longo dos últimos anos — e devia ser qualificada como tal. Esta narrativa vive de uma lógica adversarial que joga quase sempre na antecipação e é fomentada com uma obstinação doentia em órgãos de comunicação social, nas redes sociais e onde mais for possível. Apesar de esta vitimização encenada representar o pior do futebol português e alimentar uma cultura de ódio vista em dirigentes, treinadores, jogadores e adeptos, essa estratégia tem sido executada sem impedimentos de força maior. No final do meu texto, imaginei um dia em que o futebol português não terá espaço para pessoas assim, mas sei que esse dia está muito longe de chegar, se é que algum dia chegará.
Se dúvidas existissem, nada como ouvir Pinto da Costa poucos dias depois numa varanda da Afurada. O presidente do Futebol Clube do Porto, pai espiritual desta forma de estar no futebol, fala durante meia dúzia de minutos e confirma a narrativa lançada poucos dias antes pelo seu diretor de comunicação. Diz que é um alvo a abater, sem por uma vez mencionar quem é que disparou na sua direção. Os adeptos rejubilam. Fala de uma luta contra tudo e contra todos, abstração da qual o clube tem usado e abusado ao longo dos anos apesar de ter muito poucas razões de queixa. Os adeptos rejubilam novamente e Pinto da Costa avisa que vão ter de gramar com ele quando o seu clube vencer, e passo a citar, «uma taça para a Afurada, uma taça para os portistas, uma taça para o norte de Portugal, uma taça para os aziados».
«Aquilo que mais entusiasmou centenas ou milhares de portistas naquele momento é muito daquilo que eu espero que o meu clube nunca seja»
Há um sentimento de injustiça latente nas palavras de Pinto da Costa. Nessa tarde parece mais revoltado do que é habitual, apesar de ninguém racional perceber a que injustiça se refere Pinto da Costa. Poucos segundos depois, uma adepta portista vestida a rigor aproxima-se do microfone e grita: «Viva o Papa!» Os adeptos celebram mais uma vez. Pinto da Costa faz uma pequena pausa, ri-se e encolhe os ombros. Foi a homília do costume num clube cuja identidade é, em tudo, forjada pelo seu presidente de há quatro décadas, que faz questão de confundir a agremiação desportiva com a cidade em que esta nasceu. E é por isso que não espero que as coisas mudem. Aquilo que mais entusiasmou centenas ou milhares de portistas naquele momento é muito daquilo que eu espero que o meu clube nunca seja. Em vez de um clube com mundo, uma ideia de fechamento traduzida em jeito de clube-fortaleza. Em vez do desportivismo, o mau perder como qualidade. Em vez de rivalidade saudável, uma guerra infinita. Em vez do reconhecimento da valia dos adversários, a sua caracterização odiosa. Os clubes podem definir-se por tudo o que fazem dentro de campo, e eu nunca negarei o mérito desportivo dos adversários, mas os clubes definem-se também muito pelo espaço que ocupam na sociedade. Pinto da Costa fez uma escolha clara e é difícil conciliar essa forma de estar com uma ideia de pacificação no desporto português. Foi ele quem mais contribuiu para isso ao longo dos tais 40 anos que tanto o orgulham. Quem vier depois dele terá uma missão: continuar este legado.
Passam-se alguns dias e tropeço num vídeo de apresentação das novas camisolas alternativas do Benfica para a próxima época desportiva. Uma peça de comunicação brilhante, esteticamente imaculada, e muito oportuna. Anuncia ao mundo que um dos trajes com mais história neste país — o Manto Sagrado — irá ter o devido lugar no Museu Nacional do Traje. São apenas 56 segundos que poupam nas palavras, mas que dizem tudo através dos retratos de inúmeros benfiquistas. É uma história que conta a verdade do Sport Lisboa e Benfica, a tal verdade que legitima cada tribo. Neste caso é a história de um clube que tem uma cidade inscrita no nome e a exibe orgulhosamente porque essa cidade é o mundo inteiro e o Benfica também, porque esse clube e essa cidade deram e continuam a dar mundos ao mundo, no desporto e fora dele. Um clube em que os adeptos não poupam nas declarações de amor e fazem muito bem, um clube em os adeptos personificam o «seja onde for». Um clube que não precisa de papas nem de homílias para saber o lugar que ocupa no mundo. Precisa, isso sim, de continuar a escrever o seu lugar na história com a maior dignidade, precisa que aqueles que presidem ao seu destino compreendam o privilégio e a responsabilidade de entregar o clube melhor do que o encontraram, um clube que não existe contra tudo e contra todos, mas sim por Cosme Damião e por todos os que o fundaram, pelos ases que nos honraram o passado, e pelos milhões que mais ninguém tem.
Que aquilo que nos aproximou dos piores exemplos do futebol português nos últimos anos seja uma memória cada vez mais distante. Que as diferenças que nos apaixonam e orgulham sejam cada vez maiores. Somos do Benfica e isso nos envaidece.