Sempre a arbitragem
O jeitão que dá apontar o dedo ao telhado do vizinho quando o nosso é de cristal
AS arbitragens continuam a ser tema central das discussões em torno do futebol e há várias razões que justificam a atração. A maior de todas é cultural. Há em quase todos nós (pobres latinos que não conseguem escapar a esse destino) uma tentação irresistível para olharmos para essa variável como um instrumento persecutório. É como se os árbitros fossem colocados em campo com o único objetivo de destruírem o trabalho honesto de gente séria e profissional. Somos estruturalmente assim. Uns eternos calimeros, apaixonados por processos de vitimização, que de algum modo nos aconchegam a alma quando a razão nos assiste. E quando não assiste também. O jeitão que dá apontar o dedo ao telhado do vizinho quando o nosso é de cristal. Curiosamente, convivemos bem com arbitragens que nos beneficiam. Aí sorrimos, ficamos caladinhos e esperamos que ninguém repare. Somos uma raça gira, de facto.
Mas não é nova esta apetência para colocarmos nos erros dos outros o fundamento maior do nosso desaire. Historicamente sempre o fizemos, mesmo quando as nossas falhas superaram, tantas vezes, as que nos lesaram. A diferença é que nos dias de hoje o choradinho é mais amplificado. A sua difusão é maciça e, por vezes, perversa. No entanto, importa salientar que não mora apenas nos outros o mal dos nossos pecados. Os árbitros não são inocentes neste processo. São até corresponsáveis por muito daquilo que lhes acontece e por duas razões em particular:
- A primeira é porque, às vezes, põem-se a jeito. Com uma tecnologia tão sofisticada, não é aceitável que cometam erros grosseiros em lances tão cristalinos. A vídeoarbitragem aumentou-lhes a exigência e diminuiu-lhes a tolerância. A incompetência momentânea, a desconcentração pontual e a falta de rigor na tarefa têm consequências elevadas nos dias de hoje. Não pode partir deles o contributo indireto para o temporal que tantas vezes se abate sobre as suas cabeças.
- A segunda é porque nunca souberam acompanhar os novos tempos. Não há comparação entre passado e presente: o jogo evoluiu, os meios são outros, a informação (e desinformação) circula a uma velocidade inacreditável. E o que é que a arbitragem fez para acompanhar o processo? Nada. Continua a não comunicar, continua a não falar e continua a a resolver em off o que devia esclarecer em on. A comunicação no setor é a mesma que era há 50 anos: nula! Enquanto todos perceberam que, nesta matéria, o mundo mudou, a arbitragem estagnou. Do lado de dentro, silêncio ensurdecedor.
O que é preciso para se perceber que esta (não) estratégia não defende os árbitros enquanto homens e profissionais? O que é preciso para se perceber que os únicos que circulam ao contrário na autoestrada são aqueles que estão notoriamente errados? Os árbitros levam porrada a toda a hora e quem pode fazer alguma coisa para os proteger e poupar não faz nada, não diz nada. São muito feios os sinais que esta inação - que, sublinho, não é de hoje nem de ontem, sempre foi assim - passa para o exterior. O paradigma tem que mudar. Há formas inteligentes de falar para fora sem se comprometer, sem se afundar. O silêncio não é claramente uma delas. O Papa percebeu isso (já viram que existe o e-terço?), as grandes empresas e instituições, os presidentes e ministros, os reis e rainhas, os príncipes e princesas também. Mas a arbitragem não. A arbitragem continua a achar que encaixar sem falar é o caminho certo. Digam-me: porquê? Melhora o ambiente? Esclarece as pessoas? Dilui suspeitas? Ajuda a explicar? Defende os árbitros?
Enfim.