Regresso às origens
Hoje já não estou no ativo. Sou apenas mais um madeirense que seguiu com a sua vida
CONFESSO que é um momento especial, este de voltar ao ponto de partida, até porque o motivo que me traz de volta é importante para mim: venho apresentar o meu último livro, O Futebol Explicado no Relvado, aos meus conterrâneos, muitos deles familiares e amigos de longa data.
A minha história é, no essencial, bastante fácil de contar: saí da Madeira aos 16 anos por opção familiar. Vim primeiro para Aveiro (onde fiz o 11.° ano) e, no ano seguinte, assentei arraiais em Lisboa, onde fiz o resto da escolaridade e vivo desde então. Para trás ficou parte significativa da família, além de vizinhos, colegas e amigos de uma vida. Não foram tempos fáceis, os da adaptação a uma realidade bem distante da insular. Por cá tudo é diferente em dimensão e oportunidades, mas isso não invalida (pelo contrário, só reforça) a magia de um local absolutamente fantástico. Um local com outras características, de maior apego e convivência, onde vivi parte marcante da minha juventude.
A carreira na arbitragem começou cá, através da AF Lisboa (tinha 18 anos, por coincidência a idade mínima para tirar o curso na altura), mas o árbitro lisboeta sempre se sentiu como um madeirense de gema. Essa impressão digital ainda mora na pronúncia que escapa quando estou mais acelerado e nas pessoas com quem mantenho contacto diário. Está também escrita nas minhas memórias, sobretudo nas boas, as que escolho lembrar (há também as outras, mas essas prefiro apenas não esquecer). Recordo com saudade os tempos em que joguei à bola nos infantis e depois iniciados do Nacional, as várias escolas que frequentei enquanto menino, os jogos a que assisti no então velhinho estádio dos Barreiros (na altura os três grandes da ilha jogavam lá) e, sobretudo, os dias inteiros que passava na casa da minha Avó Judite. Toda a gente devia ter uma avó como a minha Avó Judite. Este regresso a casa segue-se a muitos outros, bem mais agitados e, por vezes, bastante apertados.
Dirigi várias partidas do Marítimo, União, Nacional, Câmara de Lobos, Machico e muitos outros, algumas delas em jogos deles entre si, dérbis daqueles mais calorosos, que um madeirense nunca esquece. Sinto que fui sempre uma espécie de mal-amado. Um malandro que renegou as suas origens e que de cada vez que regressava à sua terra tinha o único propósito de prejudicar as equipas locais. Errado, muito errado, mas ninguém consegue contrariar o sentir emocional de um povo. Houve um dia, num apressado jantar pós-jogo (antes da viagem de regresso a Lisboa), em que um adepto encostou-me um garfo aos olhos e disse-me que a sua vontade era espetá-lo bem fundo, até, e cito, «rebentar-te os miolos». Passei por várias situações chatas ao longo da carreira, mas essa marcou-me... não pelo perigo do garfo em si (seria o que Deus quisesse), mas por ter acontecido lá, naquele paraíso que sempre foi meu também. Hoje já não arbitro, já não estou no ativo. Sou apenas mais um madeirense que seguiu com a sua vida e que agora regressa ao ninho. Levo comigo as pessoas mais importantes da minha vida e vou rever outras que nunca deixaram de o ser. Sim, é especial e emocionante.
A cerimónia de lançamento do livro será amanhã, dia 10, no Museu de Imprensa da Madeira (em Câmara de Lobos) - espaço gentilmente cedido pela autarquia local -, onde conto ter várias dezenas de amigos(as) por perto. Depois haverá algum tempo livre para comer uma espetada em pau de louro, um belo de um bolo do caco com manteiga de alho, lapas, bife de atum, peixe espada preto e até beber uma brisa maracujá ou uma Nikita (sem álcool, juro que nunca toquei numa gota que fosse). Haverá ainda tempo para, pela primeira vez, dar uma ação de formação aos árbitros madeirenses. Tenho a certeza que regressarei (literalmente) de barriga cheia.