Ponto de ordem
Volto hoje a repisar algumas ideias subjacentes à função que desempenho, a de comentador de arbitragem. Faço-o porque gosto de coisas claras e bem explicadas. Faço-o para que não restem dúvidas, para ninguém, sobre o que hoje me move. Faço-o porque há momentos na vida (poucos) em que falar é mais importante do que ignorar. Só para nos situarmos então:
1. Sou comentador de arbitragem porque essa foi a única proposta séria, palpável e honesta que recebi quando terminei a carreira.
2. Percebi logo ao que vinha e, por isso, ponderei bem o modo e a forma como queria entrar nesse meio. Sabia que, de um ex-árbitro, todos esperavam feedback técnico sobre lances de jogo. Pessoalmente sempre achei a expectativa francamente redutora, mas culturalmente as coisas são como são. Num universo cheio de Tudólogos, que ao menos fale quem sabe do que sabe, do que conhece, estudou e vivenciou toda uma vida.
3. Por ter antecipado cenário tão castrador, criei em simultâneo o Projeto Kickoff, uma iniciativa pessoal que tentou oferecer perspetiva diferente da arbitragem. O conceito, entretanto transposto para livro, site e redes sociais, consiste em explicar as regras do jogo, humanizar o papel do árbitro e esclarecer situações dúbias, de forma pedagógica.
4. Rapidamente percebi que não há muita gente interessada em aprender, compreender ou respeitar a figura do juiz de campo. A cultura vigente - estimulada, em permanência, por gente com responsabilidade no futebol - não é a do gosto pelo jogo, é a da paixão desmedida pelo clube do coração. Quer isso dizer que cada iniciativa didática, palestra ou explicação tem (quase sempre) retorno zero. Já cada lance controverso, cada decisão dramática, cada análise de um jogo mais difícil, é exponenciada ao limite. A resposta aí é maciça, surgindo sob a forma de insulto, ofensa ou ameaça.
5. Já quanto aos lances em si, a verdade é que a esmagadora maioria das pessoas não quer uma opinião técnica. O que quer é uma posição que valide a sua. E querem-na para depois a usarem como arma de arremesso, como fundamento de vitimização ou prova de perseguição. E assim se constrói o enredo de uma novela sem fim, com atores conhecidos de protagonismo intermitente. Em casa, o telespectador, bem mandado, dá audiências a tudo isso, convencido que o futebol, afinal, não tem mais nada para oferecer.
6. Também são alguns os árbitros que mantêm posição idêntica: se o ex-colega diz bem, é um tipo porreiro, boa gente, um amigo de sempre. Se aponta o erro, é apenas um ressabiado que se esqueceu que foi árbitro. Um ingrato que não defende os seus. Tudo como se estivessem acima da crítica, como se tivessem de ser protegidos por um manto de corporativismo que, na verdade, só os fere.
7. Há exceções (muitas e boas) entre uns e outros. Há quem saiba ouvir, respeitar e separar as águas, ainda que discorde. E há também quem perceba que cada um tem a sua função e desempenha-a o melhor que sabe e pode. Separadamente. Conscientemente.
Os tempos mudaram e estes são, de facto, dias difíceis. Até o Vaticano criou o E-Terço, vejam bem. Hoje não há como fugir ao escrutínio milimétrico e à pesquisa microscópica. Se não for o João, será o Carlos ou o António a fazê-la. Sobreviver a esta realidade requer caráter, resiliência e personalidade. Requer, sobretudo, independência, quer deste lado, quer desse lado. Não é para quem quer. É só para quem pode.