O futebol que temos e o futebol que queremos
'Palavra de Gverreiro' é o espaço de opinião quinzenal de Pedro Sousa, adepto do SC Braga
Jorge Valdano, cuja voz tantas vezes ecoou nas páginas do jornal espanhol Marca com uma lucidez rara no desporto moderno, tem-se assumido como um guardião de princípios e de valores que, longe de se limitarem ao universo do futebol, tocam a essência do ser humano. O seu pensamento, que transcende a tática e a gestão, é um contributo precioso para o futebol, em particular para o futebol português que sonha em superar-se.
Inspirar-nos na visão de Valdano é, pois, projetar um desporto não apenas orientado para o sucesso, mas capaz de se ancorar numa autenticidade e numa verdade que são, afinal, o seu património mais valioso.
Um dos princípios centrais de Valdano é a valorização do talento como fonte de renovação do jogo. Em Portugal, onde a formação tem dado ao mundo jogadores de primeiríssima linha, o desafio passa por criar condições que não só revelem talentos, mas que os sustentem e preparem para o rigor da alta competição. Não se trata de reter os jogadores a qualquer custo, mas de lhes oferecer um ambiente onde possam crescer. Valdano defenderia a criação de um campeonato em que os jovens talentos portugueses tenham condições para amadurecer antes de se aventurarem no estrangeiro, fortalecendo o futebol português enquanto mercado e espetáculo.
Mas Valdano não ignora que o talento só prospera num ambiente onde a ética e a integridade sejam respeitadas. Portugal deve ser capaz de construir uma estrutura de governança que funcione como exemplo de transparência e rigor, onde os clubes estejam comprometidos com um fair play financeiro autêntico e onde outros interesses não tenham espaço para prosperar. O futebol que queremos, à imagem do que Valdano escreve, deve viver de clareza e responsabilidade, de forma a que cada adepto sinta o seu clube como uma instituição limpa e orientada para o bem comum.
Outro aspeto essencial é a construção de um modelo de gestão que valorize a cultura e a identidade de cada clube. O futebol português é rico em histórias e tradições, mas necessita de um novo ímpeto cultural que una as comunidades aos seus clubes e projetos. Valdano diria que o sucesso desportivo só tem verdadeiro valor quando se reflete em orgulho e pertença nas suas gentes. Em Portugal, uma liga com clubes mais culturalmente enraizados e competitivos reforçará a mística do campeonato, atraindo mais adeptos, mais apoio local e, inevitavelmente, mais receitas.
A modernização tecnológica, outra das bandeiras que Valdano tem erguido, deve ser um compromisso inadiável. A análise científica do jogo e as ferramentas digitais de gestão e promoção dos clubes são, hoje, instrumentos essenciais para que o futebol português se coloque ao nível das ligas mais avançadas. O uso inteligente da tecnologia não só otimiza a performance, como amplia a experiência dos adeptos, que exigem hoje conteúdos e envolvimento digital constante.
Por fim, Valdano lembra-nos sempre que o futebol é uma linguagem universal, capaz de comunicar sem palavras e de tocar o mais fundo dos sentimentos. Num mundo cada vez mais fragmentado, o futebol português deve ser uma plataforma de união, de identidade e de coesão social. Este é, aliás, o legado de Graça Moura e Prado Coelho, que, por várias vezes, pintaram o futebol como uma arte, um espaço de criatividade e emoção que, como tudo o que é verdadeiramente humano, merece ser tratado com dignidade.
O futebol que temos é o nosso ponto de partida. Mas o futebol que podemos ter, inspirado na clareza de Valdano, na integridade de Graça Moura e na profundidade de Prado Coelho, deve ser um ideal a que aspiramos. Que seja esta a nossa ambição: fazer do futebol português um símbolo de ética, cultura e paixão, à altura do que o desporto pode e deve representar para uma sociedade inteira.