O caçador e o general
Pedro Gonçalves inventa espaços e atalhos para o golo que mais ninguém conhece. Tem o instinto do caçador e finge que é sorte o que só é precisão
TODOS os grandes goleadores têm um dom. Uma capacidade única e específica de tornar o golo mais fácil do que é. Na oportunidade em que o colega de equipa tem azar, porque a bola bate no poste e sai, o goleador tem a sorte de a bola bater no poste e entrar. Como o aparente pormenor não se explica racionalmente, ao nível do limitado conhecimento da mente humana, descarrega-se o assunto na lei da sorte e do azar. Talvez não seja rigoroso. O goleador espreita nesgas onde outros veem obstáculos e muros intransponíveis. Faz passes para a zona da baliza onde não está o guarda-redes, enquanto outros chutam sem critério. Além disso, o goleador conhece espaços no labirinto das defesas, que os outros não conhecem. Um género de atalhos para o golo que se inventam mais por instinto de caçador do que por uma supervisão de jogo. O goleador vê o golo como uma peça de caça que procura na floresta. Tem paciência e poder de observação, mas é impiedoso perante o erro do adversário. É por tudo isto que o goleador é sempre o jogador mais temível de qualquer equipa.
Obviamente que falamos de uma forma geral, numa síntese de todos os grandes goleadores do futebol mundial, mas não negamos que escrevemos, o que escrevemos a pensar em Pedro Gonçalves. É estranho que Rúben Amorim, por vezes, ainda tenha dúvidas sobre o seu lugar na equipa. Longe da área, Pedro Pote Gonçalves é um peixe fora de água. Precisa de estar na frente, porque nem sequer tem características de um goleador de meia distância. Porém, é um sniper que vê, aponta e dispara para o sítio certo, sem que alguém dê por ele. Damos pelo golo, isso sim, quando a bola entra na baliza pelo sítio menos previsto. O mais curioso é que nem mesmo os melhores golos o parecem entusiasmar até à exuberância na comemoração. Tal como acontece com o caçador profissional, ele tem uma ética especial na relação com a vítima.
PEPE parece, hoje, um general no campo de batalha. E isso tem qualquer coisa de romântico. Ele sabe que, hoje, os generais ficam nos gabinetes a traçar planos, a fazer a guerra num comando à distância. Ora o que diferencia Pepe dos restantes generais é que ele comanda no terreno, no meio dos tiros, das bombas, dos obuses, dos mísseis. Não sabe e não quer comandar de outro lado, porque ama muito o futebol, mas nada o fascina fora das quatro linhas. É um atleta notável, como Cristiano Ronaldo, e vive, sem demonstrações exteriores de ansiedade, as últimas curvas da sua longa e fantástica carreira. É a lei da vida, todos sabemos isso, mas é doloroso, sobretudo quando se trata de um caso tão intenso de dedicação, paixão e competência.
Muito poucos conhecem o seu verdadeiro nome: Kepler Laveran de Lima Ferreira. Todos conhecem o Pepe que cumpre, amanhã, os 40 anos de idade. Nasceu em Maceió, no Brasil, mas é mais português que brasileiro e não só por jogar na nossa Seleção Nacional. Fez-se, por cá, no futebol e é um daqueles exemplos de jogador que pensa com o corpo todo. Se um goleador conhece os espaços nos labirintos da defesa, Pepe conhece os espaços onde, previsivelmente, irá passar o goleador e estará lá, antes do tiro ser disparado.
Hoje - temos de admitir - é essa intuição, no fundo, esse dom, que lhe garante, junto com a experiência de jogo e de vida, uma utilidade indiscutível no eixo da defesa do FC Porto. É desse lugar que comanda, que orienta, que organiza.
Não há jogadores insubstituíveis, porque ninguém, em lado algum, será insubstituível, mas alguns fazem mais falta que outros.
DENTRO DA ÁREA — FAVA E BRINDE NO MESMO BOLO
Sou do tempo em que os bolos reis tinham lá dentro uma fava e um brinde, embrulhado em papel. Eu adorava, quando era miúdo e a minha avó trazia o bolo rei da Central da Baixa. Depois, era tudo uma questão de sorte ou de azar. A quem saísse a fava teria a missão de pagar o próximo bolo. Era azar. A quem saísse o brinde, era a sorte de ter uma prenda surpresa. Raramente saíam as duas coisas ao mesmo. Mas foi o que aconteceu ao Sporting. O Arsenal é a fava e o brinde. Porque é provavelmente intransponível mas, também, uma festa rara.
FORA DA ÁREA — DEVASTAÇÃO, TRAGÉDIA E MORTE
Um ano de guerra na Ucrânia. Devastação, tragédia, morte. A indústria de armamento já não deve ter cofres para guardar tanto dinheiro, mas calculo que nunca deixe o vício da insaciedade. Para lá do sangue ininterrupto das batalhas, há lógicas que se opõem, geoestratégicas que se anulam, intolerâncias que se agravam. O fim, está longe de, sequer, estar à vista. O que é trágico para todo o povo ucraniano e dramático para os povos a Ocidente e a Oriente. O povo, essa entidade que, a caminho do futuro, se torna cada vez mais abstrata.