O bom senso, a letra e o espírito da lei
Aplicar a lei é uma coisa, fazer justiça com a lei é outra
Aos 75 minutos do jogo SC Braga-Sporting o árbitro assistente assinalou um fora de jogo ao ataque da equipa lisboeta. Antes que o árbitro tivesse tempo de punir o adiantamento, Raul Silva - atrás no resultado e sem tempo a perder - agarrou a bola para executar rapidamente o pontapé-livre. Fê-lo de boa-fé, sem intenção de ludibriar quem quer que fosse e porque partiu do princípio que o árbitro apitara (ou apitaria de imediato). Em tese, o jogo só está interrompido quando o árbitro apita (ou quando a bola sai) e isso, de facto, ainda não tinha acontecido. Caso a interpretação do internacional eborense fosse nua, crua e desprovida sensatez, a antecipação bem intencionada de Raúl podia ter-lhe custado caro. Na prática, o que aconteceu foi o que deve acontecer sempre neste tipo de situações: Luís Godinho percebeu a ilusão momentânea (e inocente) do defesa e ordenou que o pontapé-livre indireto fosse executado. Foi tudo rápido e ninguém percebeu. Sabem porquê? Porque foi tomada a única decisão que o futebol esperava que se tomasse.
Aos 38 minutos do Farense-Rio Ave o árbitro assinalou uma falta dentro da área contra a equipa atacante. O defesa quis executar o pontapé-livre rapidamente, talvez para sacar amarelo ao adversário, rematando a bola contra as costas daquele (que estava a curta distância e não saiu da zona). No meio do anda/não anda e do pára/não pára, um defensor agarrou a bola com as mãos (dentro da sua área) para que o respetivo pontapé-livre fosse repetido. O árbitro ainda não tinha apitado. Alguém de bom senso acharia justo punir a equipa defensora (com base num entendimento rebuscado) com pontapé de penálti? Não. Ninguém sensato poderia achar que essa seria a solução certa para aquele lance. E o árbitro da partida, embora perdido momentaneamente, acabou por tomar a única decisão que o futebol esperava que tomasse.
Aqui há uns anos, qualquer apito vindo da bancada que iludisse os jogadores seria sancionado de acordo com a infração cometida. Por exemplo, se um defesa fosse enganado e agarrasse a bola dentro da sua área, seria punido com pontapé de penálti. Era uma decisão lesa-futebol, injusta e quase desumana, mas era assim. Foi o próprio IFAB quem quis acabar com as confusões, mudando a regra em definitivo. Hoje não há sanção para o jogador que toque/jogue a bola com as mãos, se isso resultar do facto de ser claramente ludibriado por um apito que vem do exterior. O que o árbitro tem que fazer aí é interromper a partida e recomeçá-lá com lançamento de bola ao solo. É a única decisão que o futebol espera que se tome.
Acontece quase todas as jornadas: no processo de substituição, suplentes a entrarem em campo momentos antes dos colegas saírem (em tese, teriam que ver o cartão amarelo); jogadores a falarem excessivamente com os árbitros sem serem advertidos; treinadores fora da sua área técnica a darem instruções para dentro do terreno de jogo (sem serem sancionados); vários elementos dos bancos de pé (quando só um pode fazê-lo); lançamentos laterais e pontapés-livres executados a vários metros do local onde aconteceram (a lei diz que devem ser executados no mesmo local), enfim... o que não faltam são exemplos práticos de situações que, em campo, são decididas não com base no rigor da letra, mas assentes no espírito que preside às leis de jogo.
O futebol é dinamismo e intensidade. Tem momentos factuais e momentos que exigem gestão diferenciada. O futebol oferece-nos várias situações técnicas que só podem ter uma solução mas também nos oferece momentos - como aquele que aconteceu na Luz (expulsão do GR do Arouca) - que devem ter a solução que o futebol espera que tenham. Aplicar a lei é uma coisa, fazer justiça com a lei é outra. Aos árbitros cabe a inteligência e a sensibilidade de aplicarem as regras dentro dessa linha, fazendo-o com uniformidade, consistência e sem ferir o espírito das regras.