O auricular e o seu reflexo
Pedro Proença e Luís Montenegro a assistirem ao jogo de Portugal e a cantarem A Portuguesa (Foto: Miguel Nunes)

O auricular e o seu reflexo

Com o jornalismo pelo meio, a política não é diferente do futebol e vice-versa. São reflexos de uma sociedade que se foi degradando e perdendo respeito por uma das profissões mais nobres do mundo

Reza a anedota que, na primeira aula, o professor pediu à aluna loura (peço desculpa pelo preconceito, mas não é meu) para tirar os auscultadores e esta, depois de muita resistência e algumas lágrimas, acedeu, aguentou uns minutos e caiu para o chão. Surpreendido com o sucedido, o docente aproximou-se e, quando finalmente pegou nos auscultadores, ouviu baixinho, com segundos de intervalo, um muito tranquilo Inspira, Expira, Inspira.

Talvez seja assim que Luís Montenegro vê os jornalistas, que, mesmo usando um auricular que os mantém presos ao curso do tempo e às obrigações profissionais, tentam fazer o seu trabalho o melhor possível, usando sentido crítico e cumprindo a missão de fazer a maior parte das perguntas que o público gostaria de ver respondidas. Provavelmente, o primeiro-ministro sentir-se-ia mais confortável como presidente de um clube a ser entrevistado no canal do mesmo, depois de conhecer as questões e riscar umas quantas, não o fossem encostar demasiado à parede. Talvez o spin doctor se tenha esquecido de prepará-lo convenientemente no briefing e seja melhor tirar de vez da equação as que levem a explicações difíceis e à troca dos pés pelas mãos. É fazer as contas! No limite, há sempre a hipótese de ser entrevistado por alguém das suas cores. O que vale zero para o contraditório e para o interesse público. Quase consigo imaginar Luís Montenegro à anos 80 na pele de Jim Hacker e com sir Humphrey a buzinar-lhe ao ouvido tal e qual teleponto na famosa sitcom, com as palavras de ambos a serem reproduzidas fielmente nos blocos de notas à sua frente. Estamos entendidos? Yes, prime minister!

Infelizmente isto diz mais de quem se presta a este papel acusatório sem nexo ou qualquer tipo de conhecimento de causa do que propriamente do jornalismo e do jornalista em si, embora reconheça permissividade para que tudo tenha evoluído desta forma. Ou não tivéssemos transmitido em prime time tamanha falta de noção, da mesma forma que antes, em inúmeras conferências, demos continuidade à falta de respeito pela profissão, que surgia de terceiros engravatados e cheios de si próprios, ao não abandonarmos a sala para que ficassem a falar sozinhos. Nunca fomos tão corporativos quanto parecemos e hoje pagamos por isso.

O futebol é apenas o reflexo da sociedade, tal como a sociedade é o reflexo do futebol. E antes de se dizer asneiras é melhor pensar-se bem, nem que se conte até dez e respire fundo. Ora, inspire e expire lá, senhor primeiro-ministro.