Manuel Sérgio e Pedroto
O treino e o pensamento cruzados numa relação histórica entre treinador e filósofo
PELA profunda relação e admiração existente entre ambos, refiro-me hoje a dois verdadeiros arautos da modernidade no treino desportivo em geral e no treino do futebol mais em particular. São eles, Manuel Sérgio, filósofo, e José Maria Pedroto, treinador profissional de futebol.
Relação esta que ao ter acontecido há mais de 40 anos, foi quase como que um fenómeno premonitório relativamente ao facto de estar hoje em curso a criação da (ainda a designar como) Associação de Filosofia e Desporto de Língua Portuguesa.
Até nisso souberam ser exemplares! O filósofo e o treinador, sugerindo-nos a necessidade de sermos capazes de associar a Filosofia e o Desporto.
Num determinado momento, Pedroto terá designado Manuel Sérgio como ‘profeta’. O que verdadeiramente não admira, pois, por um lado, Pedroto lutava então pelo seu ‘futebol total’ e por uma abordagem do treino centrada no jogo. Citando José Neto, Manuel Sérgio ter-lhe-á respondido num determinado momento, «olha para o jogo e ele dir-te-á como deves treinar».
Possivelmente, encontrou nas palavras de Manuel Sérgio algum do apoio que carecia para fazer vingar a sua opinião. Palavras essas igualmente revolucionárias quando então Manuel Sérgio defendeu que, «a ciência não chega para explicar uma lágrima humana. Assim se compreende que a vocação humana não seja só para racionalizar, mas para viver»; acrescentando que, «para escapar à preguiça da razão, urge enfrentar um problema com que a filosofia sempre se debateu: o da distância entre pensamento e realidade, entre a linguagem e as coisas.» (Manuel Sérgio, Um Corte Epistemológico, 18, 20, 21).
Ambos travavam, então, dura luta contra a mediocridade de alguns que persistiam em retender um desporto e um futebol português ‘agarrados’ ao passado e recusando tudo aquilo que não fosse ‘mais do mesmo’.
Estando hoje praticamente esquecido o que então aconteceu, importa recordar que a luta de José Maria Pedroto não teve expressão apenas no plano dos saberes relacionados com o futebol, pois caracterizou-se também por comportamentos verdadeiramente inéditos e surpreendentes.
Se, por um lado, José Maria Pedroto foi o primeiro treinador de futebol em Portugal a lutar (sobretudo na década de 80!) pela observação e análise do jogo e do rendimento participativo de cada jogador, também acabaria por ser ele que demonstraria então ser possível através da sua constante atitude reivindicativa em defesa dos interesses da sua equipa, dos seus jogadores, do seu clube e da sua região, conseguir confrontar (e mesmo afastar, posteriormente, do cargo) o então presidente da Direção do FC Porto, Afonso Pinto de Magalhães.
OBVIAMENTE, interessa-me aqui fazer ressaltar (tanto quanto possível!) a luta que ambos travaram para conseguir defender as suas opiniões, mas, principalmente, como foi decisiva a ação então desenvolvida por Manuel Sérgio, e como ele insistiu e persistiu, conseguindo fazer chegar até nós o que pensava e defendia.
«O treino será tanto mais pedagógico quanto mais se transformar num espaço aberto ao diálogo e à reflexão crítica, entre os vários elementos que compõem a mesma equipa. Assim, o treino deverá comprometer-se com a criação de estruturas mentais e uma fenomenologia da imaginação … que permitam uma rutura com o reducionismo antropológico racionalista e com todos os sistemas, onde a voz do treinador, ou o querer do dirigente, despontem sempre como indiscutíveis, indubitáveis, a-dialéticos.» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares sobre o Corpo, 65).
MAS o que significa, exatamente, para Manuel Sérgio, afirmar que o treino é, ou pode ser, uma pedagogia? Diz-nos, afinal, que nestas matérias, e nestes contextos, não há fórmulas mágicas ou seja, não há solução que dependa da aplicação mais ou menos automática de um qualquer princípio ou exercício. Não se treina ou ensina um corpo, mas alguém que é o que é corporeamente; não se treina ou ensina um músculo, um movimento dentro de um espaço, mas ensina-se um sujeito integral, pessoal, incarnado, que age com o seu corpo, que pensa com o seu corpo, que é com o seu corpo e, assim, com o seu espaço, tempo e circunstância. É isso que Manuel Sérgio nos propõe: «O treino desportivo será pedagógico quando nele se realçar o consentimento informado dos atletas e a dimensão relacional da competência do treinador, tendo presentes os limites éticos das suas funções. O atleta-peça-função deixou de fazer sentido em sociedades democráticas numa nova ética cívica. O seu rendimento, as suas performances radicam também, nos quatro pilares da educação do futuro: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser.» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares cobre o Corpo, 66).
AO contrário do que tantas vezes foi defendido no nosso âmbito desportivo, (e ainda, por vezes, continua a ser!), para se saber de uma determinada modalidade desportiva, é preciso saber mais do que dessa modalidade desportiva, das suas regras e das dinâmicas. Como diz Manuel Sérgio, qualquer desporto «é motricidade humana, não é tão só uma atividade física e, assim, tudo o que é humano está nele.» (Manuel Sérgio, O Futebol e Eu, 246).
Ainda a propósito do trabalho intensivo que os treinadores desenvolvem na análise de treinos e jogos, através do apoio das conquistas da tecnologia, Manuel Sérgio pergunta: «Porque não fazemos o mesmo, sem pedantismo, tentando penetrar no âmago da nossa consciência, com a câmara lenta da reflexão filosófica?» (Manuel Sérgio, Textos insólitos, Instituto Piaget, 2008, 134). Reforça assim a ideia de que «o homem é mais do que o homem que a ciência proclama lá da turris ebúrnea do seu geométrico saber» (Manuel Sérgio, O Futebol e Eu, 387).
No desporto, como na vida, ser e comportar-se equivale a ser bem mais do que aquilo que individualmente somos. Vulgarmente, chamamos a este facto superação; o que queremos dizer é que será sempre algo exterior aos limites físicos do nosso corpo individual que completará a integralidade de cada um dos nossos atos: sou corpo, logo, sou o que faço; sou o que faço, logo sou espaço, sou outro, sou circunstância.
É neste sentido que uma Ciência da Motricidade Humana será sempre uma Ciência do Homem integral e concreto, não podendo também «prescindir da filosofia, dado que não pode esconder nunca que é um verdadeiro projeto antropológico. O conhecimento (e a motricidade revela-o radicalmente) não é um puro exercício da razão, mas uma relação entre a razão e a vida, entre o corpo e o mundo.» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares sobre o Corpo, 34).
O que significa que uma nova ciência da Motricidade Humana constitui, assim, a base em que deve assentar uma verdadeira ciência do homem onde a motricidade humana se refere à ação e à relação, em busca da transcendência e do desenvolvimento humano. Mas não só, pois também contribui para uma constante dinâmica comportamental.
RECONHECENDO que a Ciência da Motricidade Humana deve ser entendida, por direito próprio, como par privilegiado da antropologia, Manuel Sérgio argumenta que é este projeto que «refere a primordial capacidade do ser humano de se sentir num todo integrado, vibrando em comum, sentindo em uníssono, experimentando coletivamente.» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares sobre o Corpo, 109).
Manuel Sérgio, ao referir que o seu método integrativo proporcionava condições para «um pensamento complexo, multidimensional» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares sobre o Corpo, 51), apelava a uma dimensão do nosso pensamento que, justamente, procurava fundamentar a noção de comportamento a partir da sua dimensão vivencial. A promessa de Manuel Sérgio de uma possibilidade de, filosoficamente, «unir dialeticamente o conhecimento científico ao mundo da vida» (Manuel Sérgio, Alguns Olhares sobre o Corpo, 53) constitui, assim, uma referência decisiva.
Termino, regressando ainda à luta empreendida por José Maria Pedroto. ‘Vida difícil’, como se costuma dizer, por vezes, acerca do trajeto de vida de alguém. Neste caso, no seu confronto com o então presidente da Direção dpo FC Porto, Afonso Pinto de Magalhães, Pedroto veria a 19 de Maio de 1969, uma Assembleia Geral dos sócios do clube aprovar uma moção que decidiu que o treinador era banido do clube (imaginem!), mas não só; também ficaria impedido de regressar ao clube e mesmo de entrar novamente nas instalações do então Estádio das Antas.
SEIS anos mais tarde, em mais uma Assembleia Geral realizada a 21 de Março de 1975, acabou por ser aprovada por unanimidade uma proposta que tinha como objetivo perdoar Pedroto. E seria através do ainda presidente da Direção do FCPorto, Jorge Nuno Pinto da Costa, designado na altura para chefe do Departamento de Futebol, que Pedroto regressaria ao FC Porto em 1976/77, iniciando a partir desse momento o lançamento das bases de uma notável recuperação a nível nacional e internacional.
Já agora, e como simples nota de rodapé, em Março de 1978 e no pleno usufruto desta verdadeira ‘onda de sucesso’, imprimida por José Maria Pedroto, um jovem treinador de basquetebol, de seu nome Jorge Araújo, ingressaria nos quadros do clube para uns longos, e inesquecíveis, 17 anos de frutuosa colaboração. Só possíveis pela extraordinária parceria então formada com aquele que ainda hoje designo como o ‘dirigente dos dirigentes’, o meu saudoso amigo Matos Pacheco.