Manuel Fernandes: ícone de um futebol que não volta
Manuel Fernandes, jogador do Sporting com a "Bola de Prata", prémio instituido pelo jornal "A Bola". (ASF)

Manuel Fernandes: ícone de um futebol que não volta

OPINIÃO29.06.202408:00

Manuel Fernandes era um homem simples, porque o jogador ainda não era uma firma como hoje

MANUEL FERNANDES.

Gosto de deixar as coisas assim, isoladas, simples, porque por vezes elas não precisam de mais nada. Necessitam apenas de si próprias para serem explicadas ou sentidas. A complexidade humana raramente se pode resumir ao nome, mas há casos em que essa composição pode ser mais elementar. Esta é uma dessas ocasiões.

Manuel Fernandes era do Sporting. O antigo avançado, capitão e treinador deixou que esse sentimento o guiasse na vida. Isso é muito claro na entrevista que deu a A BOLA em 2019 e que publicámos de novo nesta sexta-feira.

Não é preciso falar mais dos feitos de Manuel Fernandes em campo. O seu número de jogos, o seu número de golos, enfim, a sua ficha estatística, chegam-nos para perceber a grandeza do jogador. O que é substancialmente diferente de perceber o indivíduo. Como era um homem simples, Manuel Fernandes nunca se esqueceu da sua condição, mesmo quando a defesa do clube tivesse de ser mais acalorada e menos racional.

O arquivo fotográfico de A BOLA permite viagens inacreditáveis a um mundo em que hoje só se entra pela imaginação. Seja pela privacidade dos desportistas, seja pela privacidade das equipas, pelos treinos fechados ou por estratégias comunicativas receosas. Seja por nós, consumidores, adeptos, críticos.

A quantidade de momentos registados em câmara com Manuel Fernandes e rivais de Lisboa, e até do Porto, desafiam o tempo moderno. A ida à Gulbenkian para uma sessão com Shéu e um tabuleiro de xadrez é, hoje, uma impossibilidade. As férias no Algarve com António Morais (treinador do Sporting), Diamantino e Toni (ambos figuras do Benfica) e os filhos seriam hoje tema de forte escrutínio.

Na morte de Manuel Fernandes é fácil falar de um homem simples. Convicto, apaixonado, tantas vezes sem razão e tantas vezes com toda do mundo. É fácil porque não foi sequer preciso estar na presença física do homem para o perceber e porque a vida era, também ela, mais simples.

Manuel Fernandes (esq) e Sheu, jogadores do Sporting e Benfica durante a reportagem realizada nos jardins da Fundacao Calouste Gulbenkian, em Lisboa (ASF)

Não sei o que se pensará no futuro dos jogadores de hoje, na sua generalidade mais distantes do contacto, remetidos a um mundo só deles, seja por eles próprios, seja pelas circunstâncias que os afetam. O escrutínio constante significa que o mais inocente dos gestos pode influenciar a reputação, levar a quebra de compromissos contratuais com clubes, com patrocinadores, para não falar na saúde mental.

Manuel Fernandes era um homem simples porque o jogador o era ainda. Não era esta complexa entidade formada por ele mesmo, o seu empresário, assessor de comunicação, personal trainer, família - ou até mesmo quando esta última forma a totalidade da empresa que hoje é um futebolista.

Manuel Fernandes deixou este mundo levado por uma doença que teima ganhar quase todas as partidas. O Sporting, o Vitória, o Santa Clara, Campo Maior, Sarilhos Grandes e o dérbi de Lisboa terão saudades de um homem que se tornou ícone de um futebol que já não volta.