Mais que um clube,mais que um jogo

OPINIÃO28.09.202107:00

A equipa apresenta o embalo proporcionado por uma dinâmica de vitória e apetece acreditar que é possível chegar ainda mais longe

À hora a que escrevo, faltam aproximadamente 48 horas para mais um jogo fundamental na época do Benfica. A boa notícia é que todos os jogos esta época têm sido encarados com esse sentimento de urgência e compromisso, não porque correspondam a uma última réstia de esperança, mas porque são uma oportunidade para somar algo mais à confiança predominante. Se parece que começo a estar satisfeito, é porque estou. A máxima tantas vezes repetida de encarar a época desportiva jogo a jogo não tem sido utilizada em vão. É certo que a equipa ainda tem muito em que pode melhorar, mas estamos em setembro e só por teimosia se poderia dizer que estes jogadores - e a sua equipa técnica - não souberam levantar a cabeça com a humildade que o momento exigia e trabalhar para conquistarem jardas face ao maior adversário que tinham pela frente: a sombra da época anterior, uma das piores de que os adeptos têm memória. Se alguma coisa está ganha? Absolutamente nada, e tudo pode ainda terminar com o pior dos desfechos. Mas a equipa que tem entrado no relvado apresenta o embalo proporcionado por uma dinâmica de vitória e, quando assim é, apetece acreditar que é possível manter a toada e chegar ainda mais longe.
Será importante agora perceber até que ponto poderemos evoluir da crença para tornar o nosso jogo jogado cada vez mais uma convicção. Isso passa por conseguir conquistar mais algumas jardas já esta quarta-feira frente a um dos mais difíceis adversários do futebol mundial, mesmo que esteja em crise. Lembro-me bem de os ver jogar na Luz há alguns anos (2012), e a razão por que me lembro bem é porque acabara de fazer uma noitada na agência de publicidade em que trabalhava e, apesar de entusiasmado com a hipótese de ver o melhor futebolista da história ao vivo, acabei por adormecer, involuntariamente embalado pelo jogo do Barcelona. Não terá faltado muito para que alguns dos jogadores do Benfica se juntassem a mim nessa noite. Foi a primeira e única vez que adormeci a ver um jogo de futebol num estádio. Desde então, se uma troca de bola se prolonga com qualidade por demasiado tempo, é provável que dê por mim a recordar-me do dia em que adormeci a ver o Messi. Quando isso acontece costumo guardar o embaraço para mim, mas hoje decidi escolher esta página para o confessar, porque este Barcelona foi, para mim e para muitos outros, uma obsessão (e continua a ser). Nessa noite saí do estádio moderadamente entediado e resignado com o resultado final - perdemos 0-2 - mas também consciente do muito que nos faltava para chegar ao nível telepático que o Barça de Mascherano, Xavi, Iniesta, e obviamente Messi, entre outros, mostraram ao longo destes anos.
 

Benfica tem estado em grande no campeonato e faz adeptos acreditarem numa época gloriosa também na Europa


O Barcelona atual é uma sombra dessa equipa, como explica o jornalista britânico Simon Kuper no muito recomendável The Barça Complex, publicado no mês passado. O livro resulta do acesso inédito do jornalista a boa parte da estrutura do Barcelona - dirigentes, funcionários, jogadores, treinadores - e conta a história da ascensão e queda do clube catalão, bem como tudo o que cabe aí dentro, do génio Johan Cruyff à academia La Masia, dos retratos vários da vida diária do clube ao mais-que-génio Lionel Messi. É um retrato muito inspirador por aquilo que o Barcelona deu à modalidade e pelo modo como o clube é vivido pelos seus funcionários (o Benfica deveria pensar em fornecer acesso idêntico a um jornalista como Kuper). É também um retrato assustador - contendo lições para todos os clubes - sobre os efeitos nefastos que algumas decisões podem provocar num clube de futebol com mais de 120 anos.
Se é inegável que o pequeno argentino se tornou, para o bem e para o mal, a maior referência dos adeptos atuais, a génese do que tornou o Barcelona incontornável reside em Cruyff, um jogador que, como se costuma dizer, devia ser ensinado nas escolas. Enquanto atleta, já revelava quase tantas boas ideias sobre a modalidade quanto o número de cigarros fumados em dia de jogo. Mais tarde, revelou-se um treinador de feitio complicado, personalidade excêntrica e arrogância de sobra que, no entretanto, criou o futebol moderno. Foi um treinador que impôs as suas ideias como nenhum outro antes dele: as permutações infinitas do passe, a posse de bola paciente mas dirigida, o espaço criado, são uma dádiva encontrada no Ajax de 71, no Barça de 92, e, não surpreendentemente, nos melhores momentos das equipas de Jorge Jesus. Digo que não é surpresa porque Cruyff continua a ser seguido por quase todos os treinadores que interessa conhecer.
Porque é que tudo isto me interessa? Porque, mesmo sendo ainda um dos adversários mais complicados do futebol mundial - o emblema que intimida os adversários, a história que carrega, e muitos jogadores habituados a estas andanças -, o Barcelona carrega hoje o fardo de ter que recuperar tudo o que já foi para os seus adeptos e para o futebol mundial. Apesar de Busquets ou Piqué, de Coutinho e Depay, e apesar das promessas quase certezas de Fati, Pedri ou Gavi, o Barcelona procura hoje abordar o jogo com o pragmatismo possível de quem ainda não sabe bem como encarar o dia seguinte. É uma equipa que entra sempre em inferioridade numérica, porque joga amputada do seu maior génio - Messi -, e que a par disso sente uma responsabilidade para com o jogo, não apenas o desta 4.ª feira, mas a dimensão identitária que faz esta modalidade avançar. Os jogadores escolhidos poderão até, nos dias bons, praticar belíssimo futebol, e serão ainda favoritos frente ao Benfica, mas este Barça já não consegue ser a estrela do Norte que foi durante tantos anos, para quase todos. O que eu espero, pois, esta 4.ª feira, é que um Benfica seguro na baliza, com excelente organização defensiva, com a melhor posse de bola que lhe vimos em algum tempo, e com finalizadores em crescendo, possa ajudar o Barcelona a renascer. Para isso, terá primeiro de ser um dos seus carrascos. Será um papel ingrato, mas poeticamente belo, este de diminuir um clube que já deu tanto ao jogo. Mas é esse apetite letal que permitirá ao Benfica continuar a conquistar as jardas que nos separam de feitos maiores. Frente a um adversário que se define - muito justamente - como mais que um clube, que os nossos façam disto mais que um jogo.